sexta-feira, 30 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 18

Deus meu! Enquanto eu falo como uma maritaca, a vida vai rodando e eu a perco! Eu tive que parar de pensar em minha própria vida, pois o vigia tocou alarme e, meia hora depois, o delegado e um policial vieram pegar Ricardo e Maria Fé.

Ricardo tinha visitas.

Ele foi levado ao limite da cidade, de onde pode ver seu carro, a porta escancarada e a lataria suja e com pegadas. Mas nem prestou atenção ao ver Fernanda sob a mira do revólver do vigia.

- Ricardo! - Ela gritou e fez menção de começar a correr, mas o vigia gritou mais alto e ela parou.

Ricardo não teve palavras. As emoções de Mata Verde o fizeram esquecer de Fernanda e ela lhe parecia uma foto em preto e branco de um passado distante. Mas, ao vê-la, a foto se encheu de cores. Confesso que senti uma pitada de ciúmes ao perceber que ele a amava. Certamente Maria Fé também.

Foi provavelmente por isso que ela o enlaçou tão rapidamente, juntando seu corpo no dele. Sussurrou em seu ouvido que ele não podia deixá-la entrar, condená-la a viver para sempre com medo de mim. Ele a abraçou de volta.

- Vai embora, Fernanda. - Ele disse e virou as costas, indo embora. O efeito dramático foi forte em Fernanda, mas a intenção de Ricardo foi simplesmente não deixá-la ver que ele chorava.

Foi naquele exato momento que Ricardo decidiu que descobriria como terminar com a maldição que dominava Mata Verde. Percebi que ele estava determinado a livrar a cidade de mim.

Como se eu quisesse ficar naquela maldita cidade.

É claro, eu iria ajudá-lo, a se livrar de mim.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 17

Foi de tanto vagar por anos a fio que terminei nas terras que hoje são chamadas de Mato Grosso, na medula da mata amazônica. Fui deixando de ser gente, virando a cada instante bicho. Sentia que me surgiam pêlos nas faces e, ao beber água no rio, percebi que, enfim, tinha me tornado uma cadela do mato. Mas ainda levemente humana, com meu cabelo escorrido de branco arrastando-se no chão, que agora ficava próximo, pois eu andava de quatro.

Prometi que nunca mais chegaria perto d'água, com medo de descobrir que nada humano havia sobrado. No fim de 4 dias, eu me sentia fraca e tomei a decisão de morrer.

Me pareceu tão simples e conveniente!

É claro que não foi assim... A sede, enfim, me deixou prostrada. Meus membros já não suportavam meu peso e meu pescoço era tão bambo quanto o de um recém-nascido. Na desidratação, eu já não tinha lágrimas, mas chorei a seco de dor e solidão.

Então, ele apareceu. Quando eu estava mais morta do que viva, quando não restava mais do que um suspiro, apareceu meu velho conhecido.

O mesmo cachorro do mato que havia comido parte de mim quando eu nasci.

Reconheci suas manchas e o olhar faminto e raivoso. Abri a boca para gritar e afugentá-lo.

Mas morri antes.

Ele se aproximou de meu corpo, que eu sentia menos meu e mais distante, como se o mundo todo se expandisse à minha volta. Só um fio de luz ainda me mantinha minimamente presa àquela casca de carne que o cachorro contornava, aproximando-se aos poucos.

Ele abocanhou de leve a batata de minha perna e aumentou aos poucos a força da mandíbula, ao mesmo tempo em que fazia força para puxar-me. Não houve dor. Nem resistência. Ele soube que eu estava morta e ia terminar o banquete que começara um tempo incontável atrás.

Todo meu ódio virou sede. O fio de luz que saía de mim e entrava no umbigo do meu corpo brilhou com intensidade.

E eu matei minha sede naquele cachorro desgraçado, ouvindo o mesmo ganido que marcara meu ouvido quando havia acabado de nascer.

Foi a última vez que ouvi aquele ganido.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 16

Não chegou a ser feliz minha curta estada em Quilombo do Sapé. Mas foi tranqüila. O problema é que viver em sociedade me incomodava. Eu me sentia observada e mal-quista por todos, mesmo quando faziam esforços genuínos para me aceitar. Terminei por abandonar a cidade numa noite escura. Fui seguir vagalumes e deixei a gorda velha, de quem não consigo me lembrar o nome, para nunca mais.

E, no entanto, eu me sentia solitária. Não queria todos nem nenhum, queria um. Mas só o conheci depois de morta. Eu sabia sobreviver das matas e tentei me embrenhar por elas e evitar todo agrupamento de gente. Ficava na beirada dos rios esperando meninos irem se banhar sozinhos. Tentava amá-los atraindo-os para o meio das águas, o que me valeu o título de Uiara.

Alguns morreram por minha causa, tentando fugir em pânico de minha presença. Mas nunca consegui afeto. Continuei me embrenhando, envelhecendo, me consumindo de vazio de alma e, aos poucos, fui ficando vingativa. Não contra alguém em particular, mas contra o fato do mundo ser tão sozinho. Nem era amor que eu exigia, mais. Acho que perdi minha alma, nessa época. Ficou apenas o rancor e a carne desejosa.

Acho que foi isso que me atraiu para ele. Mas o fato é que só depois de morta meu corpo foi desejado.

domingo, 25 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 15

Nunca achei interessante, mas já que estamos aqui, me dêem um minuto de paciência para contar minha história.

Nasci em Minas Gerais, numa velha cidade chamada Moeda. Nasci meio branca, meio negra, numa época em que os escravos ainda andavam em grilhões. Sei que minha mãe era escrava, mas não sei se fui abandonada por ordem do patrão ou por compaixão: talvez minha mãe me preferisse morta a me ver nas correntes.

Quando meu padrinho me achou, eu estava coberta de formigas, deitada em folhas de bananeira arrumadas às pressas. Acho que fui parida ali, naquelas folhas, sobre aquelas formigas que tão prontamente me acolheram em seus ferrões.

Quando meu padrinho me achou, teve que afugentar o cachorro do mato que mastigava o que devia ter sido a minha placenta. A besta rosnou enquanto andava de costas e me puxava pelo cordão umbilical ainda ligado à bolsa que levava em sua boca. Foi uma pedrada certeira que fez o cachorro me soltar e - eu sei, parece loucura, mas guardei até a morte o ganido do cão em meu umbigo, como uma cicatriz sonora de raiva e medo da vida.

Meu padrinho me pegou no colo e voltou a correr, o metal, ainda atarrachado a seus pés, cortando a carne enquanto ele se embrenhava para o meio do mato, subindo morro, buscando liberdade. Buscando quilombo, que nunca achou.

Por isso vivi minha vida toda no meio do mato, nos morros de Minas. Fugindo sempre. Sem saber o que era outra gente que não meu padrinho.

Foram muitos anos que se passaram e eu já tinha peito e cabelo nas partes íntimas quando, enfim, encontrei um quilombo. Era Sapé, que me acolheu. Meu padrinho já tinha morrido, picado de cobra. Sem saber o que fazer com o corpo e sem querer largá-los para os cachorros do mato, deixei-o descer o Rio Paraopeba, e vaguei até a cidade só de negros.

Meu padrinho havia me ensinado a falar, então pude contar minha história quando uma negra muito velha e muito gorda, anciã em Sapé, me contou que não era preciso fugir mais.

A escravidão havia terminado.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Perdoem a nossa falha

Este autor está fora do ar por alguns dias, devido a falhas técnicas. A programação do Hiscas voltará ao normal assim que tudo se normalizar.

Agradecemos a compreensão.

Adendo em 25/5/2008
Voltamos à nossa programação normal (assim espero...)

domingo, 18 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 14

O tempo começou a passar lento. Ricardo entrou num estado de estranhamento com o mundo. Eu o via deitado ao lado de Maria Fé, com os olhos esbugalhados, dormindo de forma picada, tentando encostar a mão na garota para ter certeza de não estar sozinho. Nos dias que se seguiram, pediu encarecidamente ao delegado que não retirasse as algemas que prendiam o casal. Precisava de tempo.

O passar lento do tempo me enchia de tédio. A essa altura, morta a tanto tempo, eu deveria já ter me acostumado à sensação de fome constante, mas não era bem assim. Eu tinha ódio do fato de ser mantida presa naquela cidade. Numa cidade grande, é inevitável que alguém fique sozinho. Não há como impedir.

Mas numa cidade pequena e perdida como Mata Verde, estava sendo possível. Os descuidos eram tão raros! (Antes do pequeno Pinheiro, eu não me alimentava há mais de 3 anos!). Houve um tempo, no começo de tudo, em que eu me chafurdava em almas. Ah, que lembrança boa! A cidade ainda não me conhecia. Demorou alguns meses para eles entenderem que não podiam ficar sozinhos. E mais alguns meses para todos se convencerem. E ainda outros para eles descobrirem que não podiam deixar a cidade. Lembro-me bem quando eles tentaram sair em grandes grupos, pensando que era assim, simples, me evitar! Que festa eu fiz! Quinze, vinte pessoas de uma vez! Todas com os olhares saltados ao me ver, soltando fogo pelas ventas ao respirar, minhas mãos de dedos compridos indo atrás de gargantas horrorizadas. Ganhei o apelido de Carapanã, depois disso, o que não achei muito lisongeiro, mas melhor do que Chupa-cabra...

Durante muito tempo, a cidade ficou catatônica, como o pequeno Victor. Mas aos poucos começou a se adaptar. Tenho que admirar isso nos seres humanos: são capazes de se adaptar a tudo! Depois de alguns anos, seu dia-a-dia foi se modificando, os modos de trabalho, as rotinas, até leis eles criaram e modificaram para conviver comigo. Depois de cinco ou seis anos, eles até voltaram a ter filhos! Fico impressionada... Mas eu me lembro como é estar viva e posso afirmar que eu também me adaptava muito bem ao mundo.

Só não consegui me adaptar tão bem à minha morte...

Mata Verde - Cap. 13

Tenho a impressão que foi o irmão e a cunhada de Marconi que conseguiram encontrar o delegado e trazê-lo, correndo. Ele entrou no quarto das crianças Pinheiro e não penso que se lembrasse da existência de Ricardo Araucária.

Mas Maria Fé lembrava. Puxava-o pelo braço, querendo que ele entendesse o que estava acontecendo ali.

E ele entendeu. Viu o desespero da mãe, jogada de joelhos aos pés do delegado. Viu o pai brandindo o cinto e gritando o nome de Victor que, Ricardo provavelmente intuiu, era a criança sentada no chão, encolhida, que parecia catatônica. Viu que eram necessárias três pessoas para segurar a fúria do pai.

Ouviu a mãe implorar para que o delegado não prendesse o filho e, estou certa - rapaz inteligente como ele é - que entendeu, pelas súplicas da mãe, que Victor poderia ser acusado de assassinato por ter deixado o bebê sozinho.

Enfim, enquanto todo mundo tentava resolver alguma crise, Maria Fé puxou Ricardo até o berço.

E ele entendeu que não devia ficar sozinho em Mata Verde. Ficamos tão próximos, eu, de um lado do berço, arrotando a podridão em que havia transformado a alma do recém-perecido, e ele e Maria Fé, do outro lado, sentindo o cheiro de meus gases, retorcendo o nariz.

Se ainda restava alguma dúvida para Ricardo, ela fez as malas quando ele tocou o pequeno cadáver e percebeu que o corpo ainda estava quente.

No canto, um dos homens que tentava segurar o pai sangrava em decorrência de um soco que Marconi havia acertado ao tentar se livrar. Ele agora se acalmava e os três conseguiram fazê-lo sentar no chão.

O delegado levantara Rafaela e a abraçava, enquanto ela chorava copiosamente.

Victor continuava catatônico.

Tudo isso entrava na mente arguta do jovem Araucária e, mais uma vez, eu percebi que poderia me apaixonar por aquele homem belo e inteligente, se a situação fosse diferente.

Mas não era. Por isso eu teria que me contentar em esperar um descuido... E beber sua alma.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 12

Na tristeza da solidão: é só quando eles conseguem me ver.

Mas é um momento doce. Sinto o aroma da adrenalina misturando-se, freqüentemente, ao da urina que escorre pelas pernas do vivente. O terror se espalhando pela alma é como uma preliminar. É o beijo que antecede o coito.

Nesse caso, o bebê Pinheiro foi um tanto frustrante. Aliás, foi duplamente frustrante.

Primeiro, porque em sua inocência de primeiros dias, enxergando apenas manchas e luzes, ele não me distinguiu da própria mãe, certamente. O que é irônico, mas não tão gostoso quanto olhos horrorizados. Em segundo lugar, porque naquele corpo havia tão pouca alma. Foi como beber vinho no copo de cachaça: deixa um gosto de quero-mais.

Ainda assim, foi prazeroso enfiar minhas garras imateriais em sua pele tenra e rosada, estraçalhando células e liberando todo o líquido guardado no corpinho. Abocanhar seu rosto com minha boca porca e imunda, minha língua penetrando nas mínimas narinas e sugando, sugando... Eu tinha fome! Há tanto tempo as pessoas dessa cidade maldita não se descuidavam! Eu tinha tanta fome!

Os movimentos dos bracinhos e perninhas foram ralentando até se congelarem numa carcaça oca e seca, cortiça de carne humana. Quando Rafaela e Marconi entraram no quarto, eu já arrotava a alma de seu filho recém-perecido. Tinha gosto de gozo feminino. Gosto de amêndoas e ferrugem.

Eu amo os pequenos descuidos.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 11

Maria Fé reportou todo o caso para seu tio, o delegado. Os dois sentaram-se e tentaram - a princípio calmamente, mas cada vez mais exasperados - fazer com que Ricardo focasse no que era realmente importante: como aquele homem havia morrido.

Ao invés de se deixar convencer, o rapaz se tornava cada vez mais resistente. Quanto maior o esforço de Ameixeiras e de sua sobrinha de fazê-lo entender a situação, mais Ricardo tentava argumentar que eles estavam cegos pela superstição. O delegado havia algemado novamente Ricardo a Maria Fé e a discussão teria levado dias...

Mas o timming do destino muitas vezes ajuda o herói.

E, nesse ponto, tenho que deixar a história de Ricardo por um instante e me concentrar numa casa há alguns quarteirões dali. Na casa onde Rafaela Pinheiro terminava de dar banho em seu bebê.

O filho mais velho de Rafaela, Victor, lia revistinhas do alto de seus 4 anos, a um canto do quarto. Ele não exatamente lia, é claro. Sua vista passava de desenho para outro, irritado com o choro da criança e com o ninar murmurado da mãe.

A filha do meio, Clara, observava a mãe de perto, interessada no irmãozinho recém-nascido como se fosse um exótico animal marinho. Morreu de rir ao vê-lo fazer cocô na toalha, borrando a fralda próxima e encharcando de fezes líquidas a mão de Rafaela. Foi um suspiro cheio de impaciência que ela soltou!

E então a campainha tocou. Era Marconi Pinheiro que chegava do trabalho. Vinha, como sempre, acompanhado de Marta e João (irmão e cunhada que trabalhavam na mesma loja, se é que esses detalhes importam) e os dois provavelmente estavam com pressa, como sempre.

Suja de fezes, Rafaela não tinha como pegar o bebê. Clara era pequena demais para carregá-lo. Optou pelo mais simples: ordenou que Victor ficasse no quarto e saiu apressada para abrir a porta, tentando puxar uma Clara enojada, que queria acompanhá-la o mais longe possível daquelas mãos pegajosas e amarronzadas.

Se eu fosse psicanalista, diria que foi o inconsciente de Victor, enciumado e de saco cheio com os choros, que o fez não entender o que sua mãe dissera. Com os olhos fixos nos quadrinho, saiu atrás dela (depois, diria que a mãe o havia chamado para acompanhá-la).

E assim, o bebê ficou sozinho por alguns instantes.

Não muitos, é verdade. Rafaela abriu a porta, cumprimentou Marta e João, que cumprimentaram de volta, aos três que estavam junto à porta. Ao ouvir o 'oi, Victor', o coração de Rafaela parou por um instante. Ela gritou, agarrou o braço do marido e correu para o quarto.

Se eu tivesse um relógio, diria que o recém-nascido não ficou sozinho mais do que meio minuto.

Mas eu sou rápida.

domingo, 11 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 10

O raiar do sol pegou Ricardo e Maria Fé de volta à casa. Ela ainda tremia de pensar no cadáver que haviam encontrado. Era apenas atuação, sinto informar-lhes, e Ricardo - um rapaz inteligente - perceberia em breve. Mas, por enquanto, ele ainda acreditava nela. Um pouco pelo fato de também estar assustado. Aquilo que encontraram havia sido um homem. Por alguns momentos, ele quis acreditar que era uma escultura funesta ou um retorcido e apodrecido tronco, mas algo na forma com que as mãos da coisa pressionavam a face e aqueles olhos tão brancos diziam a ele: foi um cadáver que encontramos. Foi um cadáver.

O esvair calmo do tempo na cidade aos poucos colocou seus nervos no lugar. Era mesmo um homem morto que haviam encontrado, mas...

- Desculpe... - disse Maria Fé. - Eu fiquei tão nervosa...

Ele a encarou em dúvida, e depois incrédulo.

- Você conhece muito bem a região...

Houve um silêncio constrangedor.

- E não é como se aquele homem estivesse lá a pouco tempo... Havia poeira, teia de aranhas, lodo...

Maria Fé reergueu a coluna e relaxou os ombros, até então encolhidos. Percebeu que a farsa terminara. Ninguém podia culpá-la: ela fizera sua parte...

- Você deliberadamente me levou para ver aquele homem.

- Foi para o seu bem, Ricardo. Queríamos que você entendesse o perigo que corre.

- Que perigo eu corro? De ser atacado pela imaginação fértil de todos vocês?! Me diga: vai entrar aqui o boitatá ou o curupira e chupar o meu sangue??

Pela primeira vez, quis entrar na conversa contra Ricardo. Ele acusava a todos de mentirosos? Cheguei a ficar levemente ofendida. Mas Maria Fé deu a resposta perfeita. Ela perguntou:

- Sabe qual é o problema de vocês, os céticos?

- Qual o nosso problema? - Ricardo disse em tom irônico.

- Vocês são os primeiros a morrer.

sábado, 10 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 9

- Já é seguro acender a lanterna? - perguntou Maria Fé.

Ricardo olhou para trás. As três lamparinas acesas em postes, única iluminação pública da pequena cidade, ficavam cada vez mais distantes. O potente facho da lanterna iluminou a frente, batendo, ao longe, nas paredes laterais de uma casa afastada.

- Está deserta - explicou a garota. - O dono sumiu há muitos anos e não se sabe de parentes.

À medida que se aproximavam da casa, tomaram a direita. Maria Fé explicou que os limites da cidade estavam próximos, pouco depois da casa, que era a última. Ela guiava Ricardo que ia à sua frente, cuidadoso, com a lanterna baixa para não chamar atenção.

Ao fazerem um pequeno desvio à direita, a luz da lanterna incidiu sobre algo. Esse algo já havia sido um homem. Eu o conheci. Seu nome era Terêncio Cajuzeiro. A lanterna potente iluminou quase todo o seu corpo, sentado e encolhido, na grama.

Um calafrio percorreu Ricardo ao perceber a pele acinzentada colada aos ossos do cadáver. Os joelhos recolhidos junto ao peito, os braços dobrados, as mãos, muito fechadas, comprimindo os ossos das maçãs do rosto, a boca aberta, a bochecha seca - uma fina película revestindo, côncava, o buraco da boca - e, como detalhe grotesco, uma empoeirada teia de aranha formara-se em seus lábios. Os cabelos, ainda abundantes, prendiam-se sujos e cobertos de lodo à fina pele do crânio, às têmporas e à testa.

Mas o que realmente prendia a atenção eram os olhos. Em pálpebras ressequidas, os glóbulos, ainda muito brancos, congelaram-se soltos. As íris e as pupilas dilatadas pareciam fixar a luz da lanterna. Eram olhos assustados.

Na minha opinião pessoal - e parte dos moradores da cidade concordariam comigo, mas não todos - o que aconteceu a Terêncio Cajueiro foi que sugaram sua alma.

Por séculos e séculos a alma foi procurada dentro de órgãos como o cérebro ou o coração. Mas alma é umidez. Ela espalha-se por todo o corpo, em seus líquidos. Não apenas no sangue, ou na saliva ou urina. Dentro das células, a alma circula fluida. Os cientistas dizem que o corpo humano é 70% água. Eu digo que o corpo humano é 70% alma.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 8

No entanto, aos poucos, Ricardo foi ganhando a confiança de Maria Fé. E, ao meu parecer, seu coração. Era possível ver os dois gargalhando na sala, com os casos e piadas que Ricardo tirava das mangas, como um mágico algemado à sua platéia.

Ela ouvia com atenção o que ele dizia, mesmo quando ele cochichava insubordinações e rebeldias em seu ouvido, o que ficava patente pela forma com que ele parecia cheio de raiva e ela cheia de medo.

Mas ela o ouvia.

E ele era bom: depressa, ganhou a confiança dos outros. Aos poucos - para que ninguém duvidasse de uma mudança assim, repentina - ele se deixou levar pelos casos e avisos dos mais velhos. Quisera eu ter sua audácia e sua inteligência. E sua sedução, por que não dizer? Em menos de dois meses, o velho Ameixeiras concordou que os dois poderiam ficar sem as algemas.

Mas a vida é cheia de surpresas: na segunda noite sem algemas, o rapaz acordou Maria Fé.

- É hoje! - Ele sussurou.

- É muito cedo! - Ela respondeu - Eles vão desconfiar!

- Você vem ou não? Não há ninguém: os sentinelas das esquinas já foram dormir...

- Ok... - Disse Maria Fé - Pra onde?

- De volta ao meu carro...

- Você acha que ele ainda vai estar lá?

- Ninguém sai da cidade. Quem poderia mexer no carro?

Maria Fé concordou.

- Melhor não irmos pelas ruas principais. - Ela disse - Eu conheço bem o terreno. Podemos ir pelo caminho mais curto até o limite da cidade e depois contorná-la. Ninguém vai nos seguir depois que sairmos...

Silenciosos como as cobras, os dois jovens ganharam a noite quente e escura, em direção à mata.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 7

O Delegado Ameixeiras levou os dois à casa de Maltauban. De longe, Ricardo pôde ver enquanto dois homens tiravam - arrancavam seria mais exato - as portas da frente da casa. De lá de dentro, saiam duplas atrás de duplas de pessoas carregando outras portas...

Notei que Ricardo também percebeu que em cada esquina da cidade, havia uma dupla de 'sentinelas' observando quem ia ou vinha.

Quando finalmente foram deixados sozinhos, já de noite, os dois jovens algemados deitaram-se na cama da casa sem portas. Ricardo já tinha passado pelo vexame de não conseguir mijar na frente de Maria Fé ("Ainda mais com um nome desses!", reclamou) mas o delegado garantiu a ele que o costume superaria essas vergonhas.

Maria Fé, por outro lado, parecia bem à vontade.

- É o treino. Eu vivo aqui. Nunca fiquei sozinha um dia de minha vida. É engraçado como a gente pode se acostumar a qualquer coisa.

- Então, ninguém nunca fica sozinho?

- Nunca...

- Por que?

Maria Fé deu de ombros. Quem sabe? Velhas lendas e superstições. Modus vivendi. Era como o frango com macarrão de domingo. Como as religiões. A gente não acredita completamente, mas por via das dúvidas, segue. E aquilo acaba fazendo parte da gente.

Foi o que explicou a garota.

- Você nunca pensou em confrontar as tradições?

- Várias vezes... Mas daí eu cresci.

Ricardo sentiu-se ligeiramente ofendido. Virou-se de lado, tendo que ficar com a mão esquerda às costas, por causa da algema.

- Fujo na primeira oportunidade! - prometeu, em voz baixa.

- Hum-hum - concordou Maria Fé, com certo descaso. - Posso assistir um pouco de TV?

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 6

Eu continuava no meu canto, mas quando o prefeito disse aquilo, quis sair em defesa do rapaz. No entanto, percebi que ele não tinha entendido a frase de Carvalho como uma ameaça. Olhava confuso para o homem gordo e calvo que sentava à sua frente.

- Em nossa cidade, temos duas regras que precisam ser seguidas. Elas são para o seu próprio bem.

- Olha, - disse Ricardo - eu só quero ir embora. Fica com as casas, eu não me importo...

- Ah, esse tempo já passou... - respondeu o delegado.

- Nós vamos levá-lo até sua casa. Vai ser sua, agora. É onde morreu o velho Maltauban.

O rapaz inquietou-se. Gritou e esperneou e foi controlado pelo delegado que, apesar de bem mais velho e com aparência frágil - a não ser pelo bigode viril - sabia imobilizar alguém. Ao mesmo tempo, o prefeito usava o telefone, chamando alguém.

***

Ricardo passou algum tempo se debatendo contra a algema que o prendia a um pesado banco de ferro fundido colocado na lateral do saguão da prefeitura, até que viu entrar um trio: um casal e uma jovem que aparentava ter menos de 20 anos. Os cabelos dela eram amarelos descoloridos e ela usava maquiagem escura ao redor dos olhos.

O trio conversou com o Prefeito Carvalho por vários minutos, a menina olhando de soslaio para o rapaz. Por fim, Ricardo a viu balançar a cabeça positivamente.

O casal - Ricardo pensou que fossem os pais da garota, pelas semelhanças físicas - deixou a prefeitura e ela foi trazida até ele.

- Ricardo Araucária - disse o delegado, soltando o lado da algema que o prendia ao banco e fazendo-o ficar de pé. - Conheça Maria Fé Ameixeiras, minha sobrinha. Cuidado, pois é a única que eu tenho...

E, ao fim da frase, algemou o pulso de Maria Fé, atando-a a Ricardo.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 5

- Ok, rapaz, você está preso! - agiu rapidamente o delegado. Girou o jovem com facilidade e, auxiliado pelo prefeito, algemou-o. Então começamos todos a voltar para a cidade.

- Meu carro! - O jovem protestou. Eu imagino que seus instintos o avisavam que havia se metido numa encrenca e o carro parecia sua única chance de escapulir.

- Mando alguém pegar daqui a pouco... - Mentiu o delegado - Não é como se alguém fosse roubá-lo, nesse fim de mundo.

- Por que é que eu estou sendo preso??

- Você não está realmente preso, - Disse o prefeito - mas precisamos conversar. Temos muito o que conversar...

Pelo resto do caminho reinou um silêncio assustado. Os prédios baixos e casas da cidade foram aparecendo. O grupo foi se dispersando aos pares ou trios e no final, éramos só nós quatro: o Prefeito Carvalho, o Delegado Ameixeiras, Ricardo Araucária e eu. Eu percebia o olhar de Ricardo, vasculhando o cenário. Fixando a atenção na mãe com os filhos amarrados à cintura, nos adolescentes algemados saindo em animados gritos da sorveteria, na dupla de velhinhas na janela, tão próximas.

Atravessaram a praça e entraram numa casa esverdeada, que funcionava como delegacia e prefeitura. Percebeu que não havia escritórios ou saguões. Era apenas um grande vão, com linhas no chão demarcando espaços, mas sem nenhuma parede.

O delegado puxou uma cadeira e levou Ricardo a se sentar nela. Sentou-se ao seu lado, enquanto o prefeito se acomodava atrás da grande mesa que dominava o ambiente.

- Bem-vindo a Mata Verde... - Sorriu com tristeza o prefeito - Sinto lhe informar que você vai morrer aqui...

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 4

Ah, eu nem vou tentar fazer o suspense barato: Ricardo entrou na cidade. É claro, ou a história acabava aqui. Ele entrou. Mas não foi sem esforços que as pessoas o deixaram entrar.

Uma das regras de uma cidade como Mata Verde é: ninguém sai. É por isso que é tão importante não deixar ninguém entrar. E os mataverdenses bem que tentaram. Gesticularam para um Ricardo confuso que se aproximava devagar.

Quando estava a três passos da linha que limitava a cidade - linha essa desenhada no chão, bem visível - o delegado sacou seu revólver e apontou para a perna do rapaz.

- Eu disse nem mais um passo - repetiu o delegado e Ricardo parou. Estava assustado, mas não tanto quanto os olhares que se fixavam nele. Houve um instante de tempo suspenso e então Ricardo sentiu uma movimentação aos seus pés. Uma cobra-verde de pouco mais de meio metro saia do meio dos troncos usados na barricada. Ora, qualquer um ali sabe que a cobra-verde chega a ser inofensiva, mas Ricardo era um rapaz da cidade.

No momento seguinte, ele estava entre nós, agarrado ao prefeito.

O grupo suspirou, vencido. A cidade ganhava mais um morador.