segunda-feira, 30 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 13

Há uma mágica que permite ver um determinado futuro. É claro que o futuro é feito de infinitas possibilidades, mas há uma espécie de 'curso provável' se determinadas condições forem mantidas.

Assim que soube que o primeiro vizir havia tomado o trono, a rainha lançou esse mágica para tentar ver se o futuro dos filhos e o do reino se entrelaçavam.

O que ela viu, nas imagens, foi seus dois filhos triunfando sobre os mortos e os portões de novo sob controle. Você dois irão penetrar em terreno eterno e resgatarão de lá o rei, que se tornará herói.
Um dos dois irá descobrir o terceiro portão e o reino voltara à normalidade. O outro reinará, com amor e compaixão, até seus últimos dias e junto ao rei-herói.

Mas há condições para que isso aconteça. A primeira delas é que vocês dois, príncipe e princesa, permaneçam vivos. Foi por isso que a rainha optou pelo exílio, pois sabia que entre duas guerras - contra Los e contra o primeiro vizir - o número de atentados contra a vida de vocês seria imenso, até porque o primeiro vizir deve ter lançado mão de mágica parecida para montar uma profecia a seu favor.

A magia anda escassa no reino, pois Los controla toda a luz. A rainha levara todo o estoque de luz, tempo e desejo que havia no castelo à guerra, para usá-la contra Los. Foi um golpe de sorte, já que deixou o primeiro vizir com quase nada. Mas soube-se que ele mandou buscar em todo o reino, invadindo casas, ameaçando e prendendo pessoas, para haver o máximo de luz e tempo manipuláveis que pudesse. Por alguma razão, ele não buscou desejos.

Havia outra condição: que vocês dois só retornassem ao reino quando Borboreal, o portão da luz, fosse fechado.

domingo, 29 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 12

- E minha mãe? - perguntei a ele, no dia seguinte. Eu me esforçava para atuar normalmente nesse mundo, pois não queria estragar meu próprio disfarce, mas era difícil. Sentia cada vez menos amor pelos terráqueos e saudades de um mundo que eu não conheci, mas que me acompanhava em algum canto fechado de meu inconsciente.

- O que tem sua mãe? - retorquiu 'Seu' Josias, obtuso.

- O que aconteceu com ela depois que me mandou para cá, oras! - respondi, um pouco impaciente.

- A rainha... Não sei... Eu vim para cá com você, não tive mais notícias. Seria perigoso entrar em contato, não acha? Eu só faria isso se você estivesse em perigo. No entanto, acho que alguém entraria em contato se fosse necessário ou se algo realmente ruim tivesse acontecido. A última notícia que tive dela era que ela comandava os exércitos contra Los.

Eu tinha uma espécie de sentimento de culpa por estar distante enquanto meu reino era atacado e usurpado. Passei a fazer exercícios, pedi para aprender caratê aos meus pais adotivos.

- Como é que eu sou tão parecido com os habitantes desse planeta?

- Eu já expliquei: esse planeta foi colonizado pelos exilados de nosso reino...

- Meus pais adotivos sabem?

- Que você não é filho deles? Não...

- Como?

- Você não quer ouvir essa história... - respondeu o plurinogorfo.

Mas eu queria. Então ele me contou...

Quando chegamos aqui, você era um bebê recém-nascido. Você precisava de uma família que, no entanto, não desconfiasse de nada. Ela devia acreditar que você era seu verdadeiro filho.

Então eu fui a uma maternidade e esperei que uma mulher entrasse na sala do parto. Sua mãe adotiva foi a escolhida, pois percebi que a criança que ela trazia no ventre era do seu tamanho. É claro, você já tinha algumas semanas de vida, mas nasceu relativamente pequeno e aquela mulher esperava um bebê de mais de quatro quilos.

Eu assumi o lugar de um dos enfermeiros e entrei na sala, deixando você escondido em uma barriga falsa. Agora, existe essa magia muito perigosa e que dura pouco tempo, mas que é capaz de parar o tempo por um instante rápido. Ela não exatamente pára o tempo como um todo, já que no resto do mundo os fatos continuam a se suceder, mas, dentro daquela sala, eu pude congelar o tempo daquela equipe, rezando para ninguém tentar entrar naquele exato instante.

Assim que o filho de sua mãe adotiva nasceu - o verdadeiro - eu parei o tempo e fiz a troca. E você se tornou 'filho legítimo' de seus pais...

- Uou... - eu disse, sem saber se achava o ato heróico ou monstruoso. - E o que aconteceu com o bebê?

- Eu o engoli... - contou, inseguro, 'Seu' Josias.

Arregalei os olhos. Em minha cabeça, a babá falando sobre o 'homem do saco' voltou, com força de uma revelação. Eu me levantei, instintivamente. 'Seu' Josias sorriu tentando ganhar de volta minha confiança.

- Talvez te interesse mais saber sobre a profecia...

Meu corpo estava tenso, mas minha cabeça registrou as palavras. Por fim, sentei-me, novamente. Ele realmente atiçou minha curiosidade...

sábado, 28 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 11

- Você quer dizer que eu tenho uma irmã? - eu perguntei, assombrado, a 'Seu' Josias. Uma parte de mim não queria acreditar na história, mas era uma parte pequena.

A maior parte de mim desejava ardentemente que ela fosse verdadeira.

- Quando você foi mandado para cá - disse o homem do saco - era pouco mais que um recém-nascido, por isso não se lembra dela.

- Há doze anos... - eu disse, sonhador. - Mas por que aqui?

- A Terra é um planeta de exilados. Quem veio para cá o fez porque queria ser esquecido. Com o passar dos séculos, o lugar tornou-se o que é hoje: uma terra sem lei. Ninguém ia imaginar que a rainha o mandaria para cá. É como se, para proteger alguém, você o mandasse para uma de suas cadeias. Não deixa de ser um esconderijo perfeito...

- Mas ela mandou você para me proteger, certo?

O velho sorriu.

- Então, onde você estava antes?

- O que?

- Tem pouco tempo que eu vejo você nas ruas, por perto. Você não deveria estar me protegendo?

- Eu estava. O tempo todo. Sou um plurinogorfo...

E, ao dizer isso, vi suas feições mudarem. A cor de sua pele se modificou. Por um instante, ele pareceu fora de foco - era difícil olhar para ele -, então quando voltou ao foco, eu reconheci seu rosto.

Era o ex-namorado da babá. Tinha ido algumas vezes lá em casa, e até brincado comigo. Sempre perguntando milhares de coisas.

E me assustei:

- Não me diga que a babá!...

- Não... - 'Seu' Josias respondeu - Ela é só uma 'inocente útil'...

Aquilo me reconfortou. Eu não queria que ela fosse uma de nós...

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 10

Os portões têm guardiões. Se são chamados de guardiões, essa não é uma palavra que deixa claro o papel desses seres. Cada um tem sua função junto ao portão: a de garantir sua manutenção e, através do poder desses seres, permitir que a relação entre os mundos e os portões permaneça balanceada.

O que não significa que esses guardiões não tenham ambições e a de Los ficou muito clara, assim que observou o rei se afastar, embevecido de si mesmo.

Los é o guardião de Borboreal. Um antigo deus-estrela, ganancioso e desprovido de compaixão, que viu a chance de conquistar um novo mundo ao ver seu portão escancarado e não perdeu tempo.

É claro que só soubemos de sua passagem pela primeira conseqüência: o gelo do nosso pólo norte começou a derreter. Isso fez com que o volume de nossos mares aumentasse, fazendo desaparecer sob as águas uma parte de nossos continentes. Também matou muitos dos animais aquáticos e terrestres da região.

Quando a rainha percebeu que havia algo errado, usou uma de suas magias para vasculhar a parte norte do planeta e o que ela encontrou foi um imenso buraco sobre o pólo - na verdade o portão - que parecia sugar toda a luz da região.

O primeiro ataque de Los aconteceu logo depois. É um ser imenso, formado de pura luz, cujo urro pode derreter o metal. Forte como um grande exército, ele começou a avançar pelo pólo, atacando animais por se recusarem a obedecê-lo, fazendo com que desaparecessem numa explosão de luz.

A rainha deixou o primeiro vizir tomando conta do reino e partiu para o norte, arregimentando hordas para defendê-lo. E aí começou a segunda parte do nosso problema:

Tomado pelo desejo de poder, o primeiro vizir usurpou seu trono.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 9

Foram meses caminhando para o Norte, com as temperaturas esfriando a cada passo. Como na Terra, a região norte de nosso planeta é gelada e, em seu céu, pairam luzes. Luzes que parecem encortinar parte do céu.

O rei descobriu em suas pesquisas que as luzes eram mais do que simples fenômenos magnéticos ocasionados pelos pólos. Aquela cortina de luz era, na verdade, um portão.

Os antigos chamavam esse portão de Borboreal. E quem o atravessasse teria controle sobre toda a luz que necessitasse.

Usando uma mágica simples, conhecida como O Toque, o rei escancarou o portão, observando como a cortina de luzes parecia se retrair ao dar espaço para um imenso nada, tão negro que parecia engolir toda a luz em volta dele. Ninguém sabe bem com o que o rei se parecia quando saiu de lá, pois ele mandou apenas palavras, e não imagens. Sua excitação era palpável em sua voz, mesmo à distância. Ele urrava de contentamento enquanto explicava como podia fazer escorrer luz de seus dedos e cada um dos presentes desejou intensamente ver o rei e ser capaz de manipular toda aquela luz.

O rei nos informava que podia banhar de luzes diferentes qualquer matéria, fazendo-as mudar de cor ao seu bel-prazer! A neve, dizia ele, tinha milhões de cores que deslizavam ao sabor do vento. Antes de se despedir, o rei gritou:

- Em direção a Crevatolf!
Aquela foi a última vez que a rainha ouviu a voz de seu rei. Sabe-se, através de emissários do Sul, que ele atravessou Crevatolf, mas se desconhece o que aconteceu a partir daí. E não houve tempo de descobrir, pois o que o rei não sabia era que, depois de atravessar Borboreal - depois de atravessar qualquer dos portões - era necessário fechá-lo, novamente.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 8

Era uma vez, num reino distante, um rei que queria que a mágica fosse abundante, para que ele a pudesse distribuir livremente...

Eram poucos os habitantes do reino que conseguiam manipular os elementos que constituem as mágicas. Sabia-se que eram apenas três, esses elementos: a luz, o tempo e o desejo.

Esses poucos habitantes tinham a magia a dispor de seu caráter e, com isso, muitos não-magicistas eram oprimidos.

O caso é que havia pouca luz, pouco tempo e pouco desejo no reino que fossem facilmente manipuláveis e a rainha, uma grande magicista, tinha dificuldade de conseguir armazenar mais do que alguns punhados por ano.

Então o rei soube que havia um modo de inundar seu reino de luz, tempo e desejo - o que faria dele o mais generoso dos reis. E ele se dispôs a enfrentar as barreiras para ter total controle sobre a quantidade de elementos mágicos que poderia oferecer a quem quisesse.

O rei, com auxílio da rainha, descobriu que quem atravessasse os três portões elementais seria capaz de manipular a luz, o tempo e o desejo como quem tira água e sal do mar: com abundância e facilidade, à disposição.

Assim, o rei estudou e estudou e descobriu a localização dos três portões e, depois de alguns anos, partiu, mas não em comitiva. Saiu só, no começo da manhã (antes mesmo do sol se mostrar) em busca do primeiro portão.

Ele se despediu de sua filha Bea, que tinha dois anos nessa época e amou a rainha, deixando em seu ventre a semente que, algum tempo depois, se tornaria você, Majestade.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 7

- Por que majestade?

Perguntei, alguns dias depois. Passei a voltar todos os dias pela Bernardo Guimarães, conversando longamente com 'Seu' Josias, por vezes chegando em casa depois da hora do jantar.

O 'homem do saco' pareceu ficar sem jeito.

- Tudo é majestade! - exclamou, depois de algum tempo e, virando-se para uma planta: - Olá, majestade...

- Eu nunca te vi chamando nada nem ninguém de majestade. A babá, por exemplo, que te dá comida de vez em quando, você chama pelo nome. E eu acho que ganhar comida é importante o suficiente para transformar alguém em majestade...

- É que eu não sei o seu nome... - ele tentou de novo.

- Você sabe tudo da minha vida! Sabe até sobre as fadas! Vai tentar me convencer que não sabe meu nome?

O velho sentou-se embaixo de uma árvore, em frente à velha casa dos Passos, agora abandonada, que ele fazia de lar. A casa, tombada pelo patrimônio histórico de Minas Gerais, estava destruída por dentro (coisa de uma construtura que comprara a casa e queria demoli-la para fazer um prédio).

- Borboreal... - Ele disse, mas eu não compreendi. - O nome não te lembra nada, majestade? É claro que não... Borboreal é um lugar longe daqui. Mas não é longe em termos de distância, ou de tempo, que são as lonjuras que você conhece. Borboreal é longe daqui em termos de dimensões e universos.

E então ele, sem nem se dar conta do jargão, começou:

"Era uma vez..."

domingo, 22 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 6

'Seu' Josias me ajudou a catar meus livros espalhados e riu muito quando eu disse "acho que esqueci de fechar a mochila de novo...". Ele me acompanhou até em casa e conversamos sobre a minha vida. No entanto, o que me assustou um pouco, 'Seu' Josias foi quem mais falou. Ele me contou como eu era quando bebê e das agruras que eu passava com a minha babá. Sabia como eu ia na escola e quais meus amigos preferidos. Riu-se das criancices e gafes que eu cometi no passado.

Por fim, me perguntou: - Você ainda acredita em mágica?

Quando eu era pequeno, eu acreditava em fadas porque me lembrava de algumas delas voando sobre o meu berço. Eu tentava alcançá-las com a mão - fadas verdes listradas de amarelo ou vermelhas com rabos azuis - mas elas rodopiavam acima do meu alcance.

Mais tarde, a babá me provou que era um móbile de bichinhos. Foi uma decepção grande (tão grande quanto a mentira do Papai Noel). Tornei-me mais cético, a partir de então. Não acreditava em nada, só na ciência, que para mim se restringia às duas enciclopédias - Delta Júnior e Life - que tínhamos em casa.

Disse a verdade a 'Seu' Josias: eu não acreditava mais em mágica. Mas tinha medo dela. Talvez eu simplesmente não quisesse mais acreditar, como alguém que resolve não acreditar mais em Deus, ou na matemática, o que não fazia tais coisas desaparecerem.

'Seu' Josias gostou da resposta e, como agrado, tirou de seu saco uma pequena caixa. Era prateada e entalhada e muito fria ao toque. Ele disse que a guardasse no bolso e abrisse apenas na hora de dormir.

Chegamos ao portão de casa. A babá me esperava na porta e fez um escândalo ao me ver acompanhado pelo 'homem do saco'. Disse que diria a meus pais que eu estava conversando com estranhos.

- Estranha é você! - eu respondi, atrevido, o que resultou em um banho rápido e ir pra cama às 6h00 da tarde, sem jantar, sem ver meus pais que chegavam à noite do trabalho.

Remoendo a raiva, na cama, esqueci da caixa até que ficou escuro. Percebi que não enxergava mais cores (como acontece quando ficamos de olhos abertos num quarto escuro) e lembrei-me do presente. Levantei, tropecei nas coisas no chão até onde minha calça estava jogada e enfiei a mão no bolso.

Voltei para a cama sofrendo de antecipação: o que haveria na caixa? Minha imaginação começou a tentar se infiltrar em minha razão e eu tentei bravamente barrá-la. É um pequeno sapo! Minha parte racional disse. Ou é um velho ovo de passarinho, tão frágil que parece feito de uma matéria extraterrestre!...

Mas foi minha imaginação que acertou.

Quando, deitado de novo na cama, abri a pequena caixa, de lá escorreram fachos de luz que puseram a nadar em pleno ar, rodando em círculos. Eram verde-amarelos e azuis-vermelhos. Aos poucos, minha visão focou-se nas duas...

Eram as fadas de minha infância.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 5

Dois dias depois, 'Seu' Josias me salvou de novo do Trio Molequeza. E, dessa vez, definitivamente.

Apesar de não temer mais passar pela Bernardo Guimarães, eu ao mesmo tempo me sentia tímido de encontrar o homem novamente. Como agir? Cumprimento? Faço uma reverência? Ou só o miro e mantenho minha distância?

Resolvi voltar pela Aimorés. No primeiro dia, virei na rua vindo da Rua Pernambuco e comecei a correr. O Trio Molequeza estava na praça e, ao me ver, começaram a gritar e a correr. Mas o tempo de reação deles foi longo e eu cheguei vivo em casa.

No dia seguinte, eles fizeram uma emboscada.

Enquanto corria morro acima, passei por um portão recuado e percebi, com o canto dos olhos, o baixinho. Ele saiu do esconderijo quando me viu e gritou ("Burguesete fujão!"). Os dois mais velhos surgiram, imediatamente, à minha frente. O gordo de detrás de uma lixeira do outro lado da rua, o sardento, escondido em outro vão de muro.

Fiquei cercado. Rodava como um pião, vendo os três se aproximarem. Eles andavam devagar e, de repente, faziam algum movimento brusco, me dizendo com os gestos: "Pro lado que você correr, a gente corre atrás".

Encarei o magrelo, que era quem estava entre eu e minha casa. Eu conseguiria atropelá-lo na marra? Achei que não. E o gordo estava cada vez mais perto.

- Ah, de novo não! - disse o sardento, inconformado, olhando por cima do meu ombro. Mas antes que eu pudesse ver o que era, o gordo estava ao meu lado. Um empurrão fez com que meu corpo se chocasse com a parede e eu fui ao chão como um castelo de cartas, meus livros e cadernos se espalhando pelo chão, através da boca da mochila aberta.

Aí, os dois gritaram. Gritaram alto, gritaram muito. E correram como loucos Aimorés acima.

Olhei para baixo e 'Seu' Josias estava lá. Onde antes o baixinho tinha me cercado, agora estava seu saco. Ele fazia caretas bravas e ameaçava com os punhos para o alto.

Fiquei tão agradecido que nem me perguntei para onde teria ido o menor dos integrantes do Trio Molequeza.

Borboreal - Cap. 4


Não que sorrisos sejam necessariamente incríveis. Um sorriso pode ser prenúncio de desgraça, como o sorriso do Trio Molequeza, momentos antes.

Mas o sorriso de 'Seu' Josias tinha algo de sobrenatural e bom. Cheguei a cogitar a hipótese de um Papai Noel realmente existir e se disfarçar de mendigo durante o ano, para vigiar as criancinhas. Mas o sorriso não parecia de alguém que está a espreita de garotos para descobrir-lhes pecadinhos. Havia uma pureza que tornava o sorriso encantador. Quase hipnótico.

- Obrigado pela ajuda - balbuciei, e imaginei que ele pensaria que era pela mochila, mas era bem mais do que isso. Era por afastar os Molequeza. E era pelo sorriso.

- Por nada, majestade. - respondeu o homem, começando a voltar para a varanda de minha casa, atrás de seu saco que havia ficado no chão. Colocou-o nas costas, fez uma pequena mesura e saiu assobiando.

Fiquei na varanda olhando-o sumir atrás do muro e nem ouvi a porta abrir atrás de mim. Era a babá.

- O que você ainda está fazendo aí fora, garoto!? Não mandei você entrar? O homem do saco veio me perguntar se você era obediente...

Ela não tinha mais nenhum poder sobre mim. Simples assim, 'Seu' Josias me livrou de uma surra, me deu um sorriso mágico e me libertou do poder da babá.

E ainda fechou minha mochila! (como esquecer?)

"Majestade", pensei, ignorando a babá. Quem não sonhou que era adotado e seus pais eram, na verdade, reis em países distante e mágicos? Principalmente ao ter que passar a tarde com uma babá que queria nos dominar?

Passei a tarde dentro de minha cabeça, sendo majestade (para desespero da babá).

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 3

Virando-me, escondi atrás do muro, para sair do campo de visão do homem do saco. Meu coração batia na garganta. Olhei para a esquina. Os três meninos estavam parados, me olhando. Percebi que eles não tinham vindo atrás de mim mas, quando perceberam que eu temia alguma coisa, pude ver seus sorrisos malévolos se abrindo. O baixinho tentou sair correndo, mas foi impedido pelos maiores. Eles começaram a andar devagar em minha direção.

Eu quis correr na direção oposta, mas percebi que meus pés estavam pregados no chão. Eu era o coelho na frente dos faróis do caminhão. Com muito esforço, dei um passo para longe do muro. E outro. Eles estavam bem mais perto, agora. Nossos olhares se fixavam, os deles, brilhando de prazer. Os meus, de medo.

Eles continuaram se aproximando, cada vez mais leves, enquanto eu arrastava pés cada vez mais pesados. Então eles pararam.

Há cerca de dois metros de mim.

E o brilho em seus olhos havia sumido. O que estava lá, agora? Era desconfiança?

Não.

Era medo.

Certamente não era medo de mim.

Eles começaram a correr no momento exato em que eu ouvi o portão de minha casa se abrir. Uma parte de mim, que era otimista e começou a morrer nesse dia, desejou que fosse meu pai. Senti um cheiro ocre, então. E alcoólico.

Uma mão pousou em minhas costas.

- Sua mochila está aberta. - Eu ouvi a voz dizer. Continuei sem me mexer. Era como se a voz de 'Seu' Josias tivesse o poder do cabelo de cobras da medusa. Transformei-me num bloco de pedra e, no entanto, continuei de carne e osso. E medo.

Ouvi - estátuas desse tipo podem ouvir, ficou claro - o som do ziper se fechando, enquanto sentia o repuxar em minha mochila, lento. Desajeitado. Definitivamente, humano. Mantive os olhos abertos, para saber exatamente quando o mundo se apagaria dentro do terrível saco.

'Seu' Josias deu um passo para o lado, satisfeito.

- Prooonto! - Ele disse. E então fez algo incrível.

Ele sorriu.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 2

'Seu' Josias era um homem de pele estranha, escura mas de um tom diferente. Parecia sempre bêbado, a boca semi-aberta, os olhos semi-cerrados, o andar cambaleante. Não era necessário que ele fosse o homem do saco para que eu sentisse medo dele.

Ao voltar para casa da escola, eu tinha sempre uma decisão difícil pela frente: seguir pela Rua Aimorés podendo topar com o Trio Molequeza (que é como chamávamos os três pivetes que estavam sempre pela praça da Igreja da Boa Viagem e que gostava de tirar sarro dos 'burguesetes', como eles nos chamavam), ou seguir pela Bernardo Guimarães, correndo o risco de encontrar 'Seu' Josias. A decisão variava com meu comportamento na escola: se eu não tivesse brigado e fizesse o para-casa, preferia a Bernardo Guimarães, confiante de que o saco não estaria mirando em mim. Mas se o dia fosse de traquinagem, eu preferia enfrentar os moleques.

Naquele dia, eu tinha colocado chiclete no cabelo de Michele. Coitada, foi alvo de uma dessas apostas 'você não tem coragem...', tão comuns aos doze anos. Voltando para casa, peguei a Aimorés e corri morro acima, deixando para trás a sombra do trio, que a princípio pareceu não se importar muito, mas depois ficou me vendo olhá-los enquanto corria, o que os deixou incomodados. Gritaram alguma coisa, mas eu não pude ouvir. Virei na Sergipe e tive certeza que estaria salvo ao ver o portão no muro em frente à minha casa.

Ao tocá-lo, no entanto, empalideci. Foi com muito esforço que não mijei pelas calças. Sentado no chão da varanda, a cara enviada num marmitex, o saco displicentemente ao seu lado - um pouco aberto mas não o suficiente para que eu visse seu conteúdo - estava 'Seu' Josias.

Era isso.

Tinha chegado a minha vez.

O chiclete no cabelo tinha sido a gota d'água.

Voltei-me, pensando em correr para a Igreja e vi virar a esquina o Trio Molequeza. O sardento magrelo e o gordo de cabelo ensebado cutucavam o baixinho, que revidava com tapas nas mãos dos mais velhos.

Eles pararam quando me viram.

Virei de novo para o portão.

'Seu' Josias me olhava, com seus olhos nunca completamente abertos.

domingo, 15 de junho de 2008

Borboreal - Cap. 1


'Seu' Josias era nosso homem do saco.

Não sei se vocês sabem mas, pelo menos em Minas Gerais, toda vizinhança precisa de um homem do saco. É como as babás fazem para manter ordem na casa de crianças, como eu.

Tudo começa com uma ameaça: se você não fizer o que eu estou mandando, o homem do saco vem te pegar!

- Quem? - perguntam as crianças como eu, para aprender que o homem do saco é uma espécie de Papai Noel às inversas, que arrasta seu saco pelas ruas durante o dia até encontrar um menino mau. Aí, quando a noite cai, ele entra sorrateiro pelo janela do quarto do menino e o coloca no saco, levando-o para nunca mais ser visto...

Na primeira vez, impressiona. A gente pergunta:

- E o que acontece com o menino mau?

- O homem do saco os come! - responde a babá, satisfeita e certa que terá algum tempo de obediência.

- E por que ninguém prende esse maluco??? - eu perguntei, sem obter resposta.

Com o passar dos dias ou anos, o encanto sobre o homem do saco se esmaece. E, quando a babá percebe que o seu poder está a apenas uma linha de costura branca - ou ainda, a uma teia de aranha - de desaparecer, ela te leva para dar uma volta. Escolhendo caminhos conhecidos, ela te leva para onde sabe acampar o mendigo do bairro.

Ao vê-lo, ela pega a mão do menino, como eu, e diz, aparentemente aterrorizada:

- Lá está o homem do saco!!! - Voltando assim a ter completo poder sobre o menino. Ou, nesse caso: completo controle sobre mim.

E 'Seu' Josias era o meu homem do saco.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 25

Ricardo não pensou duas vezes antes de encharcar meu cadáver com querosene. O delegado e a sobrinha apenas olharam, sem reação. Gavião aproximou-se, agachou-se ao lado de minha cabeça e quase foi atropelado por Ricardo ao tentar afagar meus cabelos. Muito tarde para arrependimentos, Sebastian!

Meu fogo ardeu no momento seguinte, o isqueiro de Ricardo dando a ignição. Sebastian levantou-se e tentou andar para trás.

Mas Ricardo não sabia que queimar meu corpo não era o suficiente. Ele não era meu único vínculo com a cidade. Eu não poderia me libertar só com isso.

Por isso, preparei-me para um último beijo: coloquei-me atrás de Sebastian e o esperei virar. Ele então viu meu rosto coberto de água, a boca escancarada cheia de dentes podres, os cabelos dessarrumados e flutuando no espaço sem atmosfera em que eu vivia.

Avancei para ele, minhas mãos geladas e esquálidas buscando seu rosto, minha língua grossa e maligna indo de encontro aos seus lábios. Eu o envolvi e o beijei quando ele abriu a boca para gritar. Tentou fugir de meu espírito e acabou jogando-se em cima do meu corpo, que ardia em chamas.

Fui atrás dele, e as labaredas vermelhas tornaram-se verdes e brancas. O fogo subiu ao consumir os dois amantes que mataram tantas e tantas pessoas na perdida cidade de Mata Verde. Ricardo, Maria Fé e o delegado simplesmente nos olharam queimar, incapazes de reagir. Foi quando Ricardo se deu conta de que havia colocado fogo no meio da floresta.

O fogo começou a cercar os três, obrigando-os a fugir. Não sei o que aconteceu com eles. Não pude segui-los: meu laço havia se rompido. Eu estava livre, enfim...

Essa é a história de Mata Verde. Mas eu não posso terminá-la sem deixar clara a sua lição de moral para todas as crianças, como havia prometido desde o começo.

Crianças: se vocês estiverem se sentindo solitários e injustiçados, se o mundo parecer podre e sua destruição parecer a única coisa correta, não saiam por aí comprando armas e matando seus coleguinhas na escola. Nem tentem se juntar a exércitos terroristas. Pensem na minha história...

E me chamem!

Eu estarei por perto, quando vocês estiverem sozinhos...

FIM

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 24

Se Sebastian se divertiu por alguns instantes, o ódio no olhar de Ricardo acabou com seu regozijo. Para deixar clara nossa posição de que havia terminado o jogo, eu sussurrei nos ouvidos de Gavião um 'chega' lento e sibiloso. Eu também queria liberdade, depois de três décadas. Queria ir embora.

Sebastian já não se assustava comigo. Mas ainda sentia calafrios, por isso não olhou para o lado, buscando não ver minha face. E eu que esperava mais de um amante...

Pouco tempo depois, nós cinco andávamos em direção à floresta. Em direção a mim. Sebastian se lembrava bem do caminho, não precisei guiá-lo. Antes de sair, no entanto, o jovem Araucária conseguiu um galão de querosene na antiga fábrica de adubo.

O rapaz espumava de ódio e lágrimas gordas saiam de seus olhos. Seus pensamentos estavam cheios de imagens de Fernanda, estou certa. Mas dessa vez não fiquei com ciúmes. Sentia que o garoto ia me dar algo que eu sabia querer há muito. A ironia de manipular sua raiva para me beneficiar era doce.

Mas ele perdeu o encanto, caindo num golpe tão simples.

O quinteto (eu inclusa) fez algo que a ninguém era permitido: saiu dos limites da cidade. Se a maldição vingativa de Sebastian me impelia a matá-los, eu racionalizava pensando que o próprio Gavião anulava aquela parte da tarefa. Eles que seguissem, comigo ao seu lado.

A caminhada foi longa e silenciosa. Sebastian o tempo todo de olhos grudados no chão, tentando evitar-me. Maria Fé segurava o braço do tio, seus olhos cheios de incerteza. O próprio Delegado Ameixeiras dava passos incertos e retorcia o bigode grosso. Uma das mãos pressionava o peito, como se ali houvesse algum talismã capaz de protegê-lo. A outra mão estava no cabo de sua arma. Como era cheio de superstições, o velho!

Só Ricardo andava com passo firme. Atiçava Sebastian a andar mais rápido, enquanto o dia terminava por trás da copas das árvores.

Foi no lusco-fusco do pôr-de-sol que os pés de Ricardo roçaram o primeiro animal morto que rodeava meu santuário. Maria Fé levou a mão ao nariz, como se houvesse algum cheiro, mas não havia nenhum.

Deitada na relva, na posição que meu amante me deixara há tantos anos atrás, nós pudemos ver meu corpo transbordando água, que escorria livremente por meu nariz, minha boca e meu sexo. Não era água pura: era água das almas que absorvi todos esses anos.

Na relva da floresta amazônica, deitada em berço esplêndido, cheia de cicatrizes, estava minha prisão.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 23

Passo a palavra a meu querido amante, Sebastian Gavião:

"Minha mãe me tirou da escola quando eu tinha 14 anos. Eu chegava em casa espancado todo santo dia. Crianças são bastante cruéis quando encarnam os preconceitos dos adultos.

Aos 18, eu vivia isolado do mundo. Tudo porque minha mãe me teve solteira. Eu não preciso contar ao delegado, ele estava lá. Os filhos dele me surraram diversas vezes. Eu odiava minha mãe por me fazer passar por isso. Parecia que eu e ela éramos as únicas pessoas que estavam todo o tempo sozinhas.

Eu saí andando pela mata, um dia. Vaguei por horas, pensando em me perder pela floresta e nunca mais voltar. Então encontrei algo estranho: uma pilha de animais mortos. Tão ressecados que, a princípio, pensei que fossem cascas de árvore. Eram dezenas, pequenos e grandes, de cachorros do mato a insetos.

No centro, encontrei uma mulher. Ela me parecia morta, mas seu corpo ainda conservava frescor. Era como se ela suasse, seu corpo coberto por uma umidade estranha, viscosa. Concluí que ela dormia e a possuí. E enquanto eu me aproveitava de seu corpo, desejava vingança de cada desgraçado morador de Mata Verde.

Na minha cabeça, a vingança perfeita seria que apenas eu pudesse possuir solidão na cidade...

Todo o resto estaria condenado à eterna companhia ou à morte. E eu gozei naquele corpo desejando intensamente, gritando que eu merecia ser vingado.

Na volta para a cidade, notei que era seguido. Ao me virar, eu a vi. Era a morta, mas em seu verdadeiro estado: decomposta, aterrorizante, definitivamente morta! Corri o quanto pude mas, ao chegar em casa, eu a vi debruçada sobre minha mãe, sugando sua alma, como se chupa uma laranja.

Ela sorriu para mim, a coisa, e me deixou só. Naquela noite, morreram tantas pessoas... O delegado se lembra, com certeza. Foi quando a cidade a conheceu.

Ninguém se lembrou de vir nos checar. Acho que ninguém se importava com a pecadora e seu filho bastardo. Achei que eu morreria sem ver ninguém vir aqui. Sem que ninguém ligasse os pontos.

Mas é tão bom vocês estarem aqui, agora..." Disse meu amante, com um sorriso levemente malvado. "A vingança só é realmente boa quando quem a sofre sabe. Agora vocês podem espalhar para todos que os Gaviões se vingaram dessa maldita cidade!"

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 22

Passaram-se vários minutos até alguém atender a porta da casa dos Gaviões. Quando ela enfim se abriu, não mais do que uma brecha, revelou um homem com cabelos brancos e rugas, que aparentava ser muito mais velho do que os 48 anos que tinha.

Ele olhou o grupo com cuidado. Certamente se lembrava do delegado, mas não conhecia os dois jovens. Olhou para trás e por um instante, pareceu que ia gritar para dentro, mas desistiu. Procurou-me, com os olhos, mas eu já estava dentro da casa, bem escondida para ouvir a conversa sem ser vista.

- Enfim, descobriu, não é? Posso parar com a farsa?

O delegado não entendeu completamente o que acontecia, mas concordou com a cabeça. Pediu que Sebastian os deixasse entrar. O homem escancarou a porta e deu passagem àquela comitiva.

- Onde está sua mãe, Sebastian?

Ele pareceu se surpreender. Seu olhar dizia: então vocês não sabem de nada...

- Ela morreu, senhor delegado. - Ele respondeu. Parecia cansado de mentir. - Ela foi a primeira vítima...

- Ok, Senhor Gavião, - intrometeu-se Ricardo - por que você não nos conta tudo, desde o início?

Sentaram-se, na sala, e eu fiquei no quarto, junto com o cadáver ressequido de Helena Gavião que jazia na cama.

- Posso tentar, - Disse a voz cansada. - mas é tudo tão antigo...

domingo, 8 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 21

- Gavião não é um pássaro... - disse o delegado, assim que Ricardo contou a ele o que havia no bilhete. - É uma família...

- Achei que todas as famílias aqui tivessem sobrenome de árvore...

- Não é uma família daqui... Helena Gavião chegou em Mata Verde há uns 50 anos.

- E foi quando as mortes começaram! - Ricardo exclamou.

- Não!... - retorquiu Ameixeiras. - As mortes começaram anos depois.

Ricardo balançou a cabeça. Mas os três decidiram visitar os Gaviões. Enquanto caminhávamos - eu tão perto deles que eles podiam sentir meu odor - o delegado Ameixeiras contou a história de Helena Gavião.

- Ela chegou à cidade da forma mais discreta possível. Foi morar numa pensão e procurou trabalho pela cidade toda. A maioria de nós tinha a impressão que ela fugia de alguma coisa e, ao se passarem alguns meses, a cidade entendeu do que.

O delegado coçou o bigode branco e continuou.

- Eu devia ter uns 12 anos quando ela chegou e assim que aquela barriga apareceu, todo mundo da cidade começou a evitá-la. Lembro-me de minha mãe me proibindo de olhar para ela e de fazer perguntas a respeito.

- Ela acabou ficando na cidade - continuou Ameixeiras - empregada da antiga fábrica de adubo, onde passou a morar, num casebre nos fundos do terreno. Dizem que o dono da fábrica abusou dela de todas as formas, o que só aumentou o preconceito da cidade contra ela.

- Eram outros tempos... - tentou se desculpar o delegado, vendo a desaprovação na expressão de Ricardo - e éramos uma cidadezinha tradicional, tentando crescer... A pobre mulher ficou isolada com o filho bastardo, mesmo quando a fábrica fechou, após a morte do dono, uma das primeiras atribuídas a Carapanã.

Odeio essa denominação... Ao longe, crescia a imagem escura e aos escombros da fábrica de adubo.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 20

Ricardo tirou o papel do bolso e olhou a letra conhecida de Fernanda. Gavião. Ele não entendeu de primeira. Acontece quando estamos chateados, eu entendo. A cabeça pára de funcionar porque a tristeza é como uma névoa baixa nos caminhos do cérebro, fazendo com que os pensamentos se percam em curvas e voltem sempre ao mesmo ponto. O cérebro triste é kafkaniano, fazendo todo o esforço para sair do lugar sem perceber que todo o esforço é para ficar parado.

Gavião. Ele disse a palavra em voz alta, atraindo a atenção de Maria Fé.

- Gavião? - ela repetiu, sem entender. Ele explicou que no bilhete de Fernanda só havia uma palavra: gavião.

Maria Fé não sabia muito dos pássaros da região. É claro que haviam gaviões na floresta, mas não se via um na cidade - não se via pássaro de espécie alguma na cidade - a um bocado de tempo. Culpa minha, eu sei. Pássaros não são grandes fãs de almas amaldiçoadas.

Gavião. Por mais que Ricardo pensasse, não entendia minha mensagem. Era preciso que ele conhecesse melhor Mata Verde para isso.

Foi um tempo que passei frustrada, esperando que algo acontecesse. Amaldiçoei-me - o que não deixa de ser irônico, por ser a segunda vez - por não ter sido mais clara. Eu podia ter deixado duas palavras, não? Uma frase, até! Mas não: quis manter o charme e paguei o preço, tendo que esperar o paspalho e a desmiolada se darem conta do Gavião...

A irritação não ajudava em nada. Mas era tudo o que eu podia fazer. A casa dos Araucárias percebeu e tremeu de medo. As janelas tilintavam como dentes. As luzes piscavam como olhos. E, num espasmo nervoso, a casa cuspiu seus dois moradores para a rua.

Eles correram para a delegacia, assustados.

Obrigado, Casa.

domingo, 1 de junho de 2008

Mata Verde - Cap. 19

O amor tem um ótimo sexto sentido. Fernanda sabia bem que Ricardo não amava aquela menininha. Sabia disso porque o amor dizia a ela que o tremor nos ombros dele enquanto se afastava era um chorar escondido.

Por isso, ela parou o carro depois da curva, de modo a não ser mais vista, esperou a noite cair e voltou, para descobrir por que estavam prendendo Ricardo naquela cidadezinha.

Era pouco mais de meia noite quando ela entrou nos limites da cidade.

O amor tem um ótimo sexto sentido, mas nenhum senso de auto-preservação, nós sabemos!

Foi interessante notar que eu ainda conseguia falar, depois de minha vida tão selvagem. Achei que ela não me ouviria, mas ela me ouviu. E, mesmo apavorada, fez tudo o que eu queria, antes de morrer.

Ah, como se eu não fosse matar minha sede só porque ela me fez um favor...

O corpo da garota foi encontrado pela manhã.

O delegado entrou na casa de Ricardo e Maria Fé tentando parecer tranqüilo. E, o mais rápido que pode, algemou os dois. Tenho que reconhecer sua inteligência: se Ricardo estivesse solto, correria para mim pensando estar correndo para sua amada.

Maria Fé teve que ficar ajoelhada ao seu lado enquanto ele se agarrava ao corpo ressequido de Fernanda. Foi ela que tirou o bilhete do bolso da morta. Mas respeitou o suficiente Ricardo para entregar-lhe o pedaço de papel.

Em caneta azul (sim, eu preferiria sangue: é uma coisa que acontece ao morrermos: ficamos mais mórbidos), na letra arredondada da garota, havia apenas uma palavra.

"Gavião".