sábado, 29 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 12 (final)

- Seu filho também é muito fiel, Lord...

O vidente afastou o corpo da mesa, devagar. Suas mãos continuavam escondidas.

- Ele confessou a morte de Vargas.

Lord Morfetus sorriu um sorriso leve. Orgulhoso.

- Mas eu sei que não foi ele... - continuou J. K. - porque Vargas não tem barba branca... Você teve a capacidade de matá-lo com a mesma navalha com que se barbeia, não é? Eu imagino que teve que improvisar, na pressa...

- Como é que você me encontrou? - perguntou o vidente, rompendo, enfim, seu silêncio.

- Qualquer outra pessoa não acreditaria em mim... Mas acho que você vai. Quem me trouxe aqui foi nosso amigo comum, que está agora na sua bola de cristal. Sorte minha que eu não tenho que contar essa parte da história no seu julgamento! - J. K. soltou uma gargalhada rápida. - Eu quero a navalha que você usou.

O vidente lançou-lhe um olhar sarcástico. Depois, refletiu e entendeu que fazia pouca diferença. Levantou-se, as mãos vazias apoiaram-se na mesa e J. K. sentiu um rápido alívio.

Foram juntos até o banheiro do pequeno apartamento na periferia da cidade. A navalha estava na pia. Aberta. O vidente a pegou e virou-se, devagar.

Recebeu o impacto da bala no peito, que o jogou contra o espelho, estilhaçando-o. Enquanto escorregava para o chão - a navalha deslizando pelos dedos sem força - encarou a arma do perito, ainda fumegando.

J. K. esperou por alguns segundos, enquanto controlava o ódio para não atirar mais vezes no corpo, esvaziando o pente de sua pistola. Ou não conseguiria vender a história de que o vidente tentou atacá-lo e que teve que se defender.

Ligou para o chefe, deu depoimentos e, de noite, a sós, num matagal longe da delegacia, queimou as fitas de vídeo do motel.

Sentiu saudades do amigo. Para o resto da vida.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 11

J. K. se recostou na cadeira.

- Bom, - disse - vamos fazer diferente: ao invés de me contar o que eu não sei, eu vou te contar o que eu já sei.

O vidente lançou-lhe um olhar curioso.

- Eu já sei - o perito continuou - como Adriano fez com que a esposa e o sócio se matassem. Sei disso porque encontramos pêlos sintéticos no lugar onde um investigador da polícia foi morto. Conversei com o dono do circo para descobrir que o único empregado que usava fantasia com pêlos era um novato. Alguém que o pai pediu ao dono que contratasse. Ele se vestia de gorila, para o show de Monga, a mulher que se transforma.

'Eu sei mais, já que encontramos Adriano e ele está preso. Ele contou que forjou a própria morte com ajuda do pai. Como ele não é casado legalmente, o pai foi chamado para identificá-lo. Eles só precisaram colocar alguém - um mendigo - no carro de Adriano e explodi-lo num acidente qualquer.

'Ele confessou - percebeu que a gente já sabia de tudo e tinha como provar, examinando o espelho e o abajur da sala - que, um dia depois do acidente, voltou para casa e encontrou a esposa com o sócio na cama. Eles não o viram. Mas ele telefonou para cada um dos dois, marcando um duelo no dia seguinte. No mesmo horário.

'Usando o mesmo truque de espelhos que é usado pra transformar Monga em gorila, ele projetou sua imagem na janela. Era madrugada, não havia luz, então o efeito foi perfeito. Tanto a esposa quanto o sócio viram um Adriano de frente para eles, puxando uma arma.

'Ele deu um pouco de sorte: os dois acertaram perfeitamente o tiro. Se não desse tanta sorte, ele estava lá, armado, pra terminar o serviço. Tenho que admitir, foi um plano e tanto...'

O vidente continuava parado, olhando para J. K. Suas mãos estavam escondidas embaixo da mesa.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 10

- Se você é mesmo vidente, o que eu vim fazer aqui?

- Amor... E trabalho...

- Não é o que todo mundo quer?

- Ah, mas no seu caso, as duas coisas estão andando juntas, não é? E tem algo muito proibido sobre esse amor, que põe em risco muito mais do que o trabalho...

- É. Tem razão... Há quanto tempo você é vidente?

- Acho que desde que nasci. Eu tenho esse dom de aprisionar espíritos em vidro.

- Olha... Sabe que eu acho que tenho o mesmo dom?

- Pra dizer a verdade, sei sim. Agora, dentro da bola de cristal, há um espírito que me diz que você já o conhece... Já conversaram... Através de um copo?

- Agora você conseguiu me surpreender de verdade... Vim aqui por causa do copo...

- É um bom espírito. Quer muito te ajudar...

- Acho que ele quer mesmo me ajudar.

terça-feira, 25 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 9

J. K. estava sentado na sala de comunicações há quase quatro horas. Não conseguia se mover. Não foi mandado para o local do crime porque seu chefe viu como ficou abatido. Todos sabiam da grande amizade entre os dois. Eram compadres, jogavam buraco com as esposas pelo menos uma vez por semana.

J. K. nunca soube como é que o investigador ficou sabendo. Soube que havia algo estranho quando enfim saiu da sala. Era o sorriso sarcástico na cara de alguém que se desfez ao vê-lo. Uma cara de espanto mal disfarçada de outro. Até chegar ao centro da sala de investigações.

O investigador, um sujeito novo, recém-concursado, gabava-se:

- Por isso, acho que foi crime passional! Não tem nada a ver com o que ele tava investigando!

Um silêncio escuro apossou-se da sala quando perceberam a presença de J. K. O perito sentiu um arrepio no final da coluna.

- Do que é que você está falando? - perguntou, aborrecido e surpreso.

- Desculpa, J. K. Eu sei que o cara era seu chapa, mas o caixa d'um motel reconheceu o Vargas... Ele entrou lá, hoje, com um cara...

O queixo de J. K. atingiu o peito.

- Pois é, cara. A gente nunca conhece completamente as pessoas! - arrematou o detetive.

J. K. correu para a sala do delegado.

- Você não pode divulgar isso!

O delegado já o esperava.

- E não vou, J. K. O cara era meu amigo, também. Minha esposa e a esposa dele são amigas... O problema é que, se foi mesmo crime passional, eu não tenho como evitar... Não podemos descartar essa linha de investigação.

J. K. se sentiu enredado. Não era só a família de Vargas que estava em jogo. Quase se arrependeu das duas horas que passou com o amigo no motel.

- Me promete que você não vai deixar ninguém falar sobre isso até termos certeza!

- Tudo bem, J. K. Ninguém vai falar.

O investigador entrou na sala e disse:

- Já conseguimos o mandado pras fitas de segurança do motel. Estou indo pra lá pegar agora. Aí, a gente vai ter o primeiro suspeito!

domingo, 23 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 8

O celular de J. K. tocou. No visor, o nome de Vargas piscou. J. K. sorriu, mas não atendeu imediatamente. Saiu da sala onde estava e foi para o corredor. Procurou ficar só, então abriu o flip do telefone e disse, em voz melodiosa:

- Oi, tesão...

Um rosnado borbulhante foi o que ouviu de volta. Vargas lutava contra o sangue que escorria para dentro de sua garganta rasgada e inundava sua epiglote. Tossiu e cospiu, e J. K. soube que era sério. Muito sério.

Correu pelos corredores, em direção ao laboratório de comunicação. Ouviu um carro acelerando e se distanciando pelo celular. Entrou no laboratório gritando. Eles precisavam rastrear a ligação.

Demorou 3 minutos para conseguirem o local.

Os sons já haviam parado do outro lado do celular.

Alguns minutos depois, ouviu a sirene do carro da polícia chegando ao local do crime. Desligou o seu telefone. Havia um silêncio pesado na sala. Todos conheciam Vargas. Todos sabiam que um policial havia morrido enquanto ouviam. A confirmação chegou em seguida.

J. K. estilhaçou seu celular no chão de cerâmica. Babava de raiva. Foi a única forma que encontrou para não chorar efusivamente.

terça-feira, 18 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 7

O bilheteiro do circo indicou o cartomante a Vargas. O detetive ainda não sabia seu verdadeiro nome, então perguntou por Lord Morfetus. A tenda do circo já havia sido desmontada. Eles se preparavam para mudar de cidade.

Encontrou o vidente em uma longa túnica, atrás da pequena tenda com a placa que indicava seu nome artístico. Ele mexia na traseira de uma caminhonete que tinha o nome do circo estampado nas laterais.

- Lorde Morfetus? - Perguntou, se sentindo um pouco bobo.

O homem olhou para ele com ar desconfiado, enquanto examinava a credencial que Vargas lhe estendia.

- Eu gostaria de conversar sobre a morte de seu filho, por um instante. - Falou, tentando passar tranqüilidade no tom de voz. Estava, agora, próximo ao velho homem, entre a caminhonete e a tenda. Ouviu a lona mover-se e virou.

Um grande gorila saia da tenda.

Instintivamente, sacou a arma, protegendo com o corpo o vidente. Mas o gorila arregalou os olhos, levantou os braços e fez um sinal de 'pare' para Vargas. Devagar, levou as mãos ao pescoço e retirou a máscara.

Era Adriano Kramer. Reconheceu-o imediatamente.

Então sentiu a navalha em seu pescoço.

- Deixa meu filho em paz! - rosnou o velho, e o sangue escapou com abundância pela garganta de Vargas.

domingo, 16 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 6

J. K. acordou assustado. Sonhou a noite inteira que tentava, sem sucesso, quebrar o copo. Levantou-se com cuidado, para não acordar a esposa. Na cozinha, tomou um copo inteiro de café sem açúcar.

Olhou para o armário. Pegou o copo de café e levou à água da pia.

O copo estourou em sua mão.

J. K. ficou paralisado até sua parte racional/científica começar a funcionar. Antes disso, apenas olhou a mão, onde cacos de vidro e sangue se misturavam no jorro de água.

Água fria, café quente, dilatação do vidro. Sua mente científica tentava desprezar detalhes e se concentrar no racional.

Enrolou a mão num pano limpo e ligou para Vargas. Precisava de uma carona para um hospital. Sua mente racional sabia que os machucados foram superficiais. Nada que precisasse de pontos. Mas Vargas se colocou imediatamente à disposição.

O prédio onde o carro de Vargas entrou tinha lençóis esterelizados...

sábado, 15 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 5

Vargas conversou com o detetive que havia investigado a morte de Adriano Kramer. Não havia muito o que contar. Acidente de carro. Mas algo interessou Vargas: não fora a esposa que reconhecera o corpo, fora o pai da vítima.

Com o endereço do pai - Raul Kramer - Vargas entrou em seu carro.

O endereço era uma casa num ponto distante da cidade. Não havia ninguém na casa, quando Vargas chegou. Olhou pela janela. A casa parecia abandonada. Precisaria de um mandato.

Tocou na casa vizinha, meio sem esperanças, apenas para não perder a viagem. Ouviu gritos de criança. Pelo menos três, concluiu. Quando a porta abriu, uma mãe cansada estava atrás dela.

- Cala a boca! - ela gritou para as crianças, com uma expressão de raiva e vergonha, enquanto examinava as credenciais de Vargas. Convidou-o a entrar. Sentaram-se na sala e os meninos acumularam-se atrás do sofá onde a mãe estava. Pareciam uma escadinha, talvez 7, 5 e 3 anos. Sorriu para eles.

- Você já matou alguém? - perguntou o mais velho, ao ver o distintivo, mas foi reprimido pela mãe.

Ela contou que, há uma semana, dois homens se encontraram naquela casa. Reconheceu Adriano pela foto. Vargas perguntou se ela poderia fazer um retrato falado do outro homem.

- Posso, - respondeu a mulher - mas sei onde encontrá-lo, se você precisa.

- Sabe? - espantou-se Vargas.

- Sim, tenho três filhos. - e, diante da incompreensão de Vargas - levei-os ao circo na semana passada.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 4

J. K. chegou em casa às 20h00. Sua esposa, professora universitária, só estaria de volta depois das 23h00. As 'crianças' estavam em outra cidade, cursando faculdade.

Ele sentou-se sozinho no sofá. Pensou no amigo, que ainda devia estar delegacia. Quis ligar para ele. Achou que não tinha o direito. As brincadeiras haviam deixado de ser brincadeira há tempo. Sentiam tesão um pelo outro e ficava cada vez mais difícil negar. Vargas o encurralava o tempo todo, mas J. K. não queria enganar a esposa. E ele sabia que era só isso: seu sentimento de honra com a mulher era a única coisa que o mantinha longe de Vargas. Sorriu, pensando se isso, por si só, já não era traição o suficiente.

Foi até o armário e tirou o copo com letras. Há alguns anos, o psiquiatra o havia convencido que era ele quem empurrava o copo. E que era seu inconsciente que falava com ele.

Ele nunca contou ao médico das vezes em que sentia uma corrente elétrica e tirava o dedo, e de tudo que o copo lhe dizia nessas ocasiões. Achou que, se contasse, ia piorar a situação.

Esparramou as letras no chão e desejou conversar com seu inconsciente: ele lhe responderia se a escolha devia ser feita? Se devia se entregar a Vargas ou se devia continuar a farsa civilizada com a esposa?

No entanto, seu dedo pareceu eletrocutar-se quando o copo partiu, descontrolado. Recolheu a mão e repetiu alto as letras:
F-R-E-N-T-E-A-F-R-E-N-T-E-C-O-M-A-R-M-A

O copo caiu. Frente a frente com arma? Intuiu que era a respeito do caso que começara no dia anterior.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 3

No dia seguinte, encontraram-se no refeitório para trocar informações preliminares. J. K. começou:

- Reconstituímos o que deu do vidro. Dois buracos próximos. Os tiros foram quase simultâneos, o dele milisegundos antes, pelo que deu pra perceber pelos ângulos de entrada das balas. Havia pólvora na mão e na roupa de ambos. E as balas também coincidem: um matou o outro. Se viram pela janela e atiraram. Pampam! Os dois no chão...

Tomou um gole de café enquanto observava a reação de Vargas. O detetive sorria como se já soubesse. J. K. deixou o melhor para o final, mas antes perguntou:

- E você, alguma coisa?

- Bom, - disse Vargas, abaixando a xícara fumegante de café - ela era viúva. Há muito pouco tempo. O marido morreu num acidente de carro há três dias. Adriano Kramer. Era procurado pela polícia. Tinha dois mandatos por fraude fiscal, um por formação de quadrilha e um por estelionato... Coisa grande...

Vargas mordeu o bolo de fubá e continuou, cuspindo farelos.

- O morto era Rafael Farah. Sócio de Adriano. Apesar disso... Você sabe mais do que contou, não sabe? - Vargas vasculhava os olhos sarcásticos do amigo.

- Bom, foi encontrado sêmen na morta... Bastante, digno de uma atividade freqüente...

- Não me diga...

- Sim, o dna indica que o sêmen era do morto...

segunda-feira, 10 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 2

O entregador de jornal gesticulava, exacerbado, e falava muito rápido, sobre muitos detalhes. Mas era de pouco uso. Havia pulado da kombi, às 6h00 da manhã, para deixar jornais no prédio ao lado e viu o sujeito deitado na grama. Como conhecia bem a vizinhança, não reconheceu o homem. Comentou com o motorista da kombi, que parou bem em frente à casa. Os dois perceberam o sangue, ainda vermelho (agora já tendia para o marrom), no peito da camisa branca e ligaram para a polícia.

Foi assim que tudo começou.

J. K., da criminalística, chegou e o detetive pediu licença ao entregador. Ele continuou falando e gesticulando enquanto Vargas se afastava.

- J. K., seu porco sujo! - gritou, brincando. Eram amigos há muito tempo, desde que entraram para a polícia, 20 anos atrás. Naquela época, o bigode de Vargas ainda era castanho e J. K. ainda tinha cabelos na cabeça.

Após um abraço e comentários curtos sobre as patroas e as crianças, o perito foi examinar a cena. Vasculharam a cozinha. Na sala escura pelas cortinas cerradas, J. K. acendeu um abajur. Um homem surgiu à sua frente, fazendo os dois pularem de encontro um ao outro. Era só um reflexo no grande espelho em cima da penteadeira.

Os amigos riram, mas Vargas não perdeu a oportunidade de dar um belo e safado beliscão na bunda de J. K.

domingo, 9 de março de 2008

Duplo Homicídio - Cap. 1

O sangue da mulher, seco no azulejo branco, lembrou ao Detetive Vargas velhas pranchas de Rorschach. Olhou pela janela quebrada e viu o corpo do homem, há não mais de 10 metros, caído no gramado que cobria a frente da casa.

A mancha no chão havia se espalhado a partir da cabeça, emplastrando os cabelos compridos e escuros da mulher - Lúcia, ela se chamava, Lúcia Kramer. O revólver ainda estava envolto por seus dedos. A bala havia entrado logo acima do nariz.

Lá fora, outros policiais isolavam a área. Esperavam a Polícia Científica chegar. Os vizinhos - era uma rua tranqüila, com casas e prédios baixos - não incomodavam. Olhavam pelas frestas das janelas, deixando entrar fragmentos do sol matutino em suas salas.
A maioria parecia querer apenas que o barulho das sirenes parasse.

Um dos policiais recolhia, pacientemente, cada pedaço de vidro estilhaçado. Parte dos cacos havia se espalhado no piso da cozinha, outra parte no cimento que circundava a casa, pelo lado de fora. Cada pedacinho achado era acondicionado num saquinho.

Vargas apertou o olhar para conferir, ao lado do homem morto com um tiro no peito, a arma caída na grama. Queria a confirmação da perícia, mas achava que os dois tinham matado um ao outro...