sábado, 26 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 30

Foi 'Seu' Josias que a viu, quando nos encontramos para almoçar.

- Bicho agourento... - exclamou, ao olhar para o céu.

Olhei na mesma direção e comecei a pular de alegria. Prosfrus, que já se servira e carregava o prato, veio correndo.

- O que foi? O que foi?

- É ela! É a Tula!

- Quem? Aonde? - ainda não tínhamos contado nada a 'Seu' Josias e ele me olhava, assombrado.

- Carne! Precisamos de carne!

- Vamos à cozinha! - disse Prosfrus.

Saímos os três correndo. 'Seu' Josias ainda gritando "o que houve? O que houve?"

Minutos depois, trazíamos todos os restos das carnes do almoço que os cozinheiros não haviam usado: vísceras, couro, ossos. Carregávamos em uma manta, que segurávamos pelas pontas.

Fomos até ao campo em frente às tendas e estendemos lá a manta com as carnes.

Tula nos sobrevoava, mas não parecia querer pousar. Pedi aos dois plurinogorfos que me deixassem a só. Achei que Tula os temia, e estava certo. Pouco depois que eles se afastaram, Tula começou a voar mais e mais baixo. Eu me coloquei a alguns passos da manta e me sentei. E cantei a mesma canção que havia cantado antes.

Poucos minutos depois, ela comia a carne na manta. Cheguei perto e a toquei. Acho que havia ganhado uma amiga.

Passei vários dias domesticando a uruguia. Enfim, ela se sentiu confiante o bastante para deixar Profrus e 'Seu' Josias chegarem perto. Comecei a treiná-la. Depois de algumas semanas, eu fazia diversos passeios em suas costas. Ela entendia o que eu queria quando voávamos e parecia agradecida pela comida.

Mas era covarde.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 29

A uruguia não parecia entender o que eu dizia, mas parecia ter inteligência. E medo, ainda. Passou direto por Prosfrus, sobrevoou por cima das árvores da floresta sempre-viva e pousou no topo de uma delas, ficando muito quieta.

Comecei a acariciar sua cabeça. Queria me mostrar seu amigo. Usava com ela técnicas que vi meu pai usar com uma cadelinha que tivéramos alguns anos atrás. Mas eu tinha a impressão que assim que eu saísse de cima dela, ela sumiria para sempre. Eu não podia distingui-la das outras uruguias. Percebi que ela era menor, mas não acho que isso seria suficiente.

O que eu queria mesmo era levá-la para casa.

Ficamos algumas horas por ali, até que ela adormeceu. Abria e fechava o bico e eu pensei que estivesse sonhando com comida. Será que eu poderia conquistá-la, assim?

Desci de suas costas devagar, passando a um galho próximo. Ouvi, ao longe, Prosfrus gritando meu nome. Tudo o que pude pensar foi em descer da árvore, caçar algum animal pequeno e oferecê-lo à Tula (pois, a essa altura, já tinha dado nome à uruguia, o mesmo da cadela de minha infância).

Comecei a descer pelos galhos até o mais baixo. Mas havia uma grande parte do tronco que não tinha galhos. Mais uma vez, toquei as alças da armadura térmica. Daria certo? Havia árvores demais para tentar.

Agarrei-me ao tronco tentando abraçá-lo. A árvore sentiu cócegas e se mexeu. Tula acordou e voou.

Eu a perdi.

Cocei de novo o tronco, tentando engolir minha decepção, e a árvore se dobrou até me deixar no chão. Quando pulei de seu galho, ela se desdobrou violentamente, balançando até parar.

Ainda ouvia os gritos de Prosfrus e os respondi.

Ao ouvir minha voz, ele se pôs a bradar com entusiasmo. 'Domador de pássaros', ele exclamava.

Mas, ao nos encontrarmos, minha expressão não era feliz.

- Ela foi embora... - eu disse.

Ele me abraçou e me atirou para o alto.

- Já sabemos o que fazer. Precisamos só pensar melhor sobre o assunto. - sorriu.

Saímos da floresta em direção às tendas. Eu me sentia orgulhoso e frustrado ao mesmo tempo.

Muitos metros acima de nossas cabeças, Tula nos seguia.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 28

Era uma guerra, aquilo! Tanta carne espalhada, carbonizada, imprestável. Tínhamos que lutar por um pedaço decente.

Eu era pequena. Assustava-me os bicos ferozes de minhas primas ao lutar pela carne fresca e sanguinolenta dos plurinogorfos caídos. Batiam-se como em batalha. E tudo só pelo prazer de lutar. Não conseguíamos acabar com toda a carne no chão, mas as maiores nos forçavam a brigar por ela.

Fui escorraçado mais uma vez. Estava faminta. Era pequena...

Vaguei pelo campo, aos pulos, desajeitada no chão. Nas alturas, eu era soberba! Mas no chão me sentia atrapalhada, fora do ambiente... As carnes eram vigiadas, não havia como evitar a luta. Mas eu estava machucada, me sentia mal e faminta.

Não acreditei quando vi o plurinogorfo na beira da floresta. Ele estava ali, antes? Como é que ninguém o tinha visto? Fingi não vê-lo, também. Andei para um lado e para o outro, como se procurasse alguma coisa, mas sempre me aproximando das árvores. Cada vez mais perto da carne estraçalhada no chão.

Então, a fome me ganhou. Esqueci a precaução, certa de que conseguiria apanhar alguns bocados de carne antes que uma de minhas primas grandes chegasse para lutar por elas. Voei até lá, descuidada, inocente.

Meu corpo doía de ficar nos galhos. Eu vasculhava o campo com o olhar e as horas passavam até que uma uruguia começou a se aproximar. Rápida como um raio. O bico aberto em direção a Prosfrus. Quis avisá-lo, mas alertaria a uruguia. Ele tinha que estar pronto para o papel dele. Se eu não estivesse, ele me daria uma bronca. Então ele precisava estar!

Faltava pouco! Muito pouco! Abri meu bico salivando ao pensar no suco vermelho e no músculo fibroso! Então a coisa se mexeu! Tentou me agarrar! Estava viva! Era uma armadilha! Bati as asas com força, me afastando rapidamente do chão e daquele plurinogorfo que aos poucos assumia suas feições normais.

Ela subia! Olhando para baixo, o pássaro subia em grande velocidade! Em minha direção.

Acelerei meu tempo e a vi diminuir a velocidade. Três metros. Dois. Passei os dedos pelas alças da armadura térmica. A uruguia me parecia enorme. Eu não tinha como errar.

Então eu o senti. Caiu em minhas costas vindo do nada. Era leve e macio, mas se agarrou em mim com força e determinação. Girei a cabeça e encarei-o.

A ave girou a cabeça e me encarou. Olhei para ela, assustado e, acho que por pura falta de graça, sorri. Vi o medo nos olhos dela.

No princípio, achei o humano simpático. Mas então ele arreganhou os dentes para mim. Um arrepio gelado atravessou minhas penas. Voei mais alto, me joguei para os lados, mas ele continuava lá. Em pânico, resolvi pedir ajuda. Comecei a voar em direção ao campo onde minhas primas se encontravam.

Mas, no meio do barulho do vento e do palpitar do meu coração, eu ouvi uma música. O humano cantava.

Não sei da onde tirei a idéia. A uruguia parecia apavorada e eu quis acalmá-la. Eu confesso que tinha muito medo. Estávamos muito acima das árvores. E ela voltava para o meio do campo. Não estou certo de que eu não pareceria apetitoso para as outras uruguias. Eu precisava acalmá-la.

Olhei para o humano, novamente. Ele parecia tão assustado quanto eu. Senti pena. As outras uruguias o matariam, facilmente. E eu seria ridicularizada. Nunca mais conseguiria comida.

Eu já era uma pária. Considerada covarde. E a voz do menino era doce, amiga.

E não é que o garoto caiu em cima da uruguia? Foi com um aperto no coração que eu a vi desaparecer nas alturas com ele nas costas. Não tive nem tempo de correr atrás e tentar alcançá-los.

Eles era um ponto escuro no céu.

Eu nunca mais veria o menino.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

Sentei-me, tentando acompanhar os dois no espaço. Meus olhos se esforçavam para vê-los.

Mas agora eles pareciam crescer. Estavam voltando! Pela rainha, o menino havia domado a uruguia!

terça-feira, 22 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 27


- Pára... - eu sussurei. E, em seguida, mais alto: - Pára!

Prosfrus parou de correr e sentiu, no meu olhar, que devia me por no chão. Foi um enterro rápido, o da minha criança. Eu simplesmente a deixei ir, rio abaixo, numa pequena canoa.

Ali, em pé, havia apenas Viramundo. Nem príncipe, nem herói. Alguém que não fora citado nas profecias e que, por isso mesmo, não precisava respeitá-las. E foi que se eu renascesse em Paraíso. Senti-me, como nunca, ligado àquela terra. E quis, intensamente, capturar uma uruguia.

Minhas pernas, é claro, não se recuperaram tão rápidas. Ainda estavam bambas pelo excesso de adrenalina. Andamos devagar, tentando montar uma estratégia para ir atrás dos grandes pássaros.

- Eu notei porque elas conseguem subir tão depressa... - eu comentei - elas não voam para a frente, ao subir. Vão quase que na vertical...

- É verdade. - respondeu Prosfrus - E elas olham para baixo, ao vigiar o perigo. O que as deixa a mercê de um ataque por cima.

- É possível subir em uma das grandes árvores da floresta?

- É. Até fácil. Mas só poderíamos nos esconder na copa. Se ficássemos no tronco elas nos veriam. E seria loucura tentar pular sobre elas daquela altura...

- A não ser que o tempo estivesse mais lento. Será que a própria queda seria mais devagar?

- Eu estive refletindo. Você parece achar que torna o tempo dos outros mais lento, mas não é isso que realmente acontece.

- Não?

- Não. Na verdade, você acelera o seu tempo. Se você diminuísse o tempo do resto do mundo, as conseqüências seriam desastrosas... Você percebeu que já cresceu uns bons dedos desde que chegou aqui? É o seu tempo se acelerando...

Chegamos a uma das árvores no fim da floresta. As uruguias já haviam voltado ao seu banquete, e eu me esforcei para olhá-las se deliciarem com a carne dos combatentes mortos.

- Elas parecem preferir os plurinogorfos... - comentei, e encarei Prosfrus.

Enfim, contei a ele meu plano. Foi difícil convencê-lo. Mas eu deixei claro que ele era responsável apenas por minha educação, e não por minha vida. É claro que a excitação o envolvia e isso facilitava as coisas. Por fim, ele cedeu.

Começamos a coçar o tronco de uma das árvores, de uma forma que Prosfrus me mostrava, e ela se curvou até a copa ficar a centímetros do chão. Prosfrus continuou coçando a árvore e eu subi em um de seus galhos, não sem antes vestir uma das armaduras térmicas. Prosfrus foi ralentando as cócegas até que a árvore se pôs de novo em pé (ele me explicou que se parássemos de repente, a árvore levantaria de uma vez - era como eles faziam para usá-las como catapulta). A altura era estonteante e achei que talvez eu devesse ter aceitado a corda que Prosfrus queria me dar. Não para amarrar a uruguia, como ele sugeriu, mas para me amarrar aos galhos.

Eu preferi tentar, a todo custo, não machucar a uruguia. Havia assistido um documentário sobre o encantador de cavalos e achava que o melhor era tentar me tornar amigo dela. Até porque em Paraíso os animais pareciam mais inteligentes que na Terra.

Olhei para baixo e vi o plurinogorfo se deitar no solo, numa posição estranha. Usando sua capacidade de mutação, ele pareceu amolecer e ficou semelhante a um dos plurinogorfos que estavam caídos pelo campo.

Agora, era esperar.

domingo, 20 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 26

Prosfrus era um guerreiro. Imagino também que raramente tenha lidado com crianças e acho que ele nunca realmente se deu conta de que eu tinha 12 anos.

Ou ele certamente não teria me levado a um campo de batalha. Especialmente num dia sanguinolento como aquele.

Mas ele me levou. E qualquer parte de mim na qual ainda havia pureza morreu quando eu saí da floresta e pude ver o final da batalha contra Los.

O cheiro de carne queimada e carvão em brasas enchia o ar. As imensas árvores da floresta sempre-viva que beirava o campo ainda ardiam com um fogo lento e eu estou certo de poder tê-las ouvido gemer. Então vi dezenas de cornocorpóreos estirados. Seus corpos semi-destruídos pelo fogo exalando cheiro de pêlos queimados. Os chifres retorcidos. Alguns com os olhos ainda abertos, vítreos. Outros com buracos crispados ao invés de olhos.

Mais à frente, centenas de crocofantes estavam carbonizados. Plurinogorfos retorcidos pela queda pareciam bonecos de massinha jogados de cima da mesa. Abatidos como insetos voadores, sua visão ainda era pior que a dos crocofantes. Esses eram apenas montes de carvão, enquanto que os plurinogorfos, protegidos do calor pelas armaduras térmicas, eram uma massa disforme avermelhada e cheias de pequenas pontas ósseas.

Segurei a mão de Prosfrus, lembrando-me, subitamente, de minha própria idade. Tive uma confulsão de choro e vomitei até cair de joelhos no chão.

Prosfrus me pegou no colo e me levou de volta para a floresta, desculpando-se insistentemente. Achei que também chorava. Confessou-me ter se descoberto insensível aos corpos depois de tantas batalhas, mas minha reação despertara sua indignação de novo.

Amaldiçoou Los e gritou alto.

Com o seu grito, vi voarem as uruguias. Eram negras e plumosas, grandes como um leão. A maioria levantou vôo do campo e ouvi suas asas batendo, mas algumas sairam de dentro da floresta. Rapidamente alcançaram o céu e eu fiquei as observando, do colo de Prosfrus, que corria.

sábado, 19 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 25

Acordei naquele dia ouvindo o urro de Los. Foi raivoso, diferente. Algumas horas depois, quando eu já tinha tomado café e já treinava com Prosfrus, os batalhões voltaram e contaram a novidade: haviam conseguido desarmar parte das armadilhas do ser-estrela. A fúria de Los foi intensa e muitos morreram. Mas os que voltaram se mostravam felizes. Era uma vitória: ganhavam tempo e impediam Los de se afastar mais do portão e se aproximar das tendas.

Não houve uma comemoração, mas os seres ficaram de especial bom humor, naquela manhã.

Então, propus a Prosfrus um exercício diferente.

- Por que não saímos das tendas? Gostaria de treinar minhas habilidades com os seres da floresta...

Prosfrus gostou da idéia. Armamos uma pequena mochila de provimentos e entramos na floresta sempre-viva. As grandes árvores pareciam murmurar enquanto passavamos. Os cornocorpóreos nos olhavam sem maior interesse, preocupados em fazer buracos para as sementes, em se proteger na floresta e se acasalar.

Perguntei a Prosfrus quais os animais mais difíceis de se capturar, na floresta. Ele enumerou alguns seres que, por mais que descrevesse, eu não conseguia imaginar exatamente.

- E as uruguias? - perguntei, enfim.

- Dificílimas! - ele respondeu, sério. - Pouquíssimas foram capturadas até hoje...

- Não seria genial se conseguíssemos pegar uma? - eu propus. O plurinogorfo coçou os ombros, cruzando os braços no peito, como eu já havia visto ele fazer antes, quando pensava. Era o sinal de que ele cogitava aceitar o desafio.

- Seria genial... Mas muito perigoso... E seria uma visão horrível...

- Por que?

- Elas se alimentam de restos... - contou Prosfrus. - Portanto, ultimamente se reunem nos campos, após as batalhas.

- Como você faria para pegar uma? - continuei colocando lenha na fogueira das vaidades de Prosfrus.

- Elas voam ao menor sinal de perigo. Se avisam umas às outras. Podem ver a maioria dos objetos invisíveis.

- Mas são imunes a magias de tempo?

Ele sorriu. Ainda assim, seria difícil. Elas ganhavam altitude muito rapidamente. As penas de suas asas eram escorregadias. Quase impossíveis de se amarrar. Além de terem bicos poderosos, capazes de quebrar ossos.

Enquanto conversávamos, percebi que mudávamos a direção que tomáramos. Íamos para os campos de batalha.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Problemas Técnicos

Estou com alguns problemas no computador de casa, após uma atualização de hardware. Assim que os problemas forem resolvidos, retomaremos a história Borboreal, no Hiscas.blogspot.com.

Por favor, não desistam!

Abraços,

Augusto

domingo, 13 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 24

Os dias começaram a se suceder. Eu treinava o dia todo, principalmente a luta com lanças, arma que eu sentia fazer parte de mim, desde que atravessara o corcoromel com a barra de ferro.

À noite, Prosfrus e eu ficávamos horas meditando. Ele me ensinava técnicas de controle do corpo e eu - para meu grande orgulho - comecei a ensinar a ele como eu controlava o tempo.

Já havia dez dias que eu estava lá, vendo todas as manhãs os exércitos partirem para batalhar com Los e voltar, reduzido e ferido. Vi poucas vezes a rainha, nesses dias, mas em pelo menos duas vezes sentamo-nos longamente para conversar. Eu contava para ela sobre a minha terra e ela me contava sobre Paraíso. Eu via sua aflição querendo ter notícias dos filhos, a saudade estampada em sua face, mesmo quando tentava sorrir. Senti pena dela e quis ser seu filho, mas não era.

Ela me contou sobre a chave.

Meu marido estava bem intencionado quando resolveu abrir os portões. Mas sou a primeira a admitir que ele foi precipitado. Eu também, já que incentivei em suas pesquisas e o auxiliei a construir o cetro que serviria de chave-mestra.

As chaves dos portais desapareceram junto com seu criador, há um tempo incalculável atrás. Os guardiões o vigiam, mas não podem abri-lo ou fechá-lo. São guardiões de seu poder, mas não o controlam. Usufruem dele para seus próprios objetivos, apenas.

Estudamos muito até entender o funcionamento das fechaduras e, por fim, montamos uma chave mestra, em formato de cetro. Ele pode ser usado para abrir ou fechar os três portões e foi encontrado caído ao lado de Crevatolf.

Los tenta chegar até as tendas para se apoderar do cetro. Se cair nas mãos dele, a batalha estará perdida. Ele ficara livre para sair de perto do portão e, se alcançar uma fonte de tempo próxima a um rio de desejos, terá acesso ilimitado a magias...

Olhei o cetro, que estava em uma campânula onde parecia flutuar acima da almofada vermelha que forrava o fundo. Devia ter cerca de 60 centímetros de comprimento e seu corpo era negro e cheio de detalhes em relevo. Sua ponta, no entanto, não lembrava as bolas que ilustram os cetros nas figuras dos livros. Ela se afinava como uma lança.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 23



Não só fiquei, como ganhei um novo amigo em Prosfrus. Ele era encarregado da segurança da rainha e se tornou meu treinador. Começou contando-me o que acontecia nas batalhas diárias.

Los nunca vai muito longe do portão.

Ele passa a maior parte do dia criando e montando armadilhas mágicas no caminho até a torre de vento, mas ainda não se sente seguro de abandonar o portão. A sua existência nesse mundo está condicionada ao portão ficar aberto.

A torre de vento fica bem embaixo da fechadura, que fica no centro do portão. Para fechá-lo, é necessário ir com a chave até a torre de vento, montada pelo rei para levar alguém até a fechadura, muito, muito alto no meio do céu.

Los também sabe que se nosso exército ficar muito poderoso, podemos derrotá-lo. Por isso, todo dia, nos ataca furiosamente. Conseguimos evitar que ele chegue às tendas, mas acho que nunca o machucamos, realmente. Dessa forma, ele destrói alguns de nossos batalhões e garante que não nos agruparemos o suficiente para ter força para derrotá-lo.

Ele também dizima nossa floresta sempre-viva. As árvores funcionam como catapultas, além de dificultar seu andar.

Sofremos muitas perdas, diariamente. Para nossa sorte, chegam voluntários com imensa freqüência de todas as partes do reino. Mas uma hora dessas ou ele vai conseguir assegurar o portal, com suas armadilhas, ou ninguém mais vai chegar e ele vai estraçalhar os exércitos da linha de frente.

Aí, o reino será dele. Paraíso é um lugar disputado, pois poucos lugares em qualquer um dos universos tem fontes naturais de tempo manipulável. Percebemos rapidamente que ele não precisa de seres vivos em Paraíso. Tudo o que ele quer é o tempo.

Passeávamos pelo acampamento, acompanhados por 'Seu' Josias, que havia voltado à sua forma natural que me lembrava um boneco de testes de acidente de carro. Eles me explicaram sobre as armaduras térmicas: as couves que se abriam em asas e envolviam o corpo dos combatentes, para que eles não se carbonizassem com o urro de Los ou ao chegar perto dele. Vimos a floresta sempre-viva se renovando após o ataque de horas atrás e, com o auxílio de um olho de jaguarade - um objeto mágico de vidro que permitia ver à distância - pude ver todo o portão e a devastação que Los vinha fazendo.

Mas não pude ver Los com o olho de jaguarade. Seu brilho ampliado pelo objeto me deixaria cego.

- Por que é necessário ir até a torre de vento? Não é mais fácil voar até a fechadura? - perguntei aos plurinogorfos.

- Alto demais. - respondeu Prosfrus - Ninguém consegue voar tão alto em Paraíso.

- Só uma uruguia... - comentou 'Seu' Josias - Mas é quase impossível pegar uma... E ela provavelmente não nos obedeceria. Não são treináveis e são estúpidas como portas... Não poderíamos controlá-la para chegar perto o suficiente da fechadura.

- E qual é o plano?

- Por enquanto, o plano é nos defendermos e bolarmos um plano...

Não era uma situação agradável, eu concluí.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 22

- Bem, Viramundo, não posso permitir que você fique, porque estamos em guerra... - disse a rainha, recomeçando a discussão. Eu rebatia cada argumento dela, mas ela rebatia cada um dos meus argumentos. Até que ouvimos uma terceira voz entrar no debate.

- Eu o vi matar um corcoromel...

A voz era de 'Seu' Josias e, para minha surpresa, estava a meu favor. A rainha olhou para o plurinogorfo e depois para mim.

- Eu devo dizer que foi impressionante...

Sorri, esperançoso. A rainha quedou-se, pensativa. Enfim, chamou:

- Prosfrustrede!

Um plurinogorfo largo e alto entrou. Seu corpo era listrado das mais diversas cores. Sua cabeça não tinha olhos ou nariz, como eu já tinha visto no cadáver de Ostrede, mas uma faixa preta que parecia girar quando ele se movia.

- Eu faço um desafio: - propôs a rainha. - se você conseguir tocar o rosto de Prosfrustrede antes dele te imobilizar, você vai para nosso treinamento de combate.

Aceitei imediatamente com a cabeça, mas 'Seu' Josias mais uma vez intercedeu a meu favor.

- Prosfrus devia pelo menos assumir as formas de um menino! Assim é injusto!

A rainha concedeu e o plurinogorfo, em instantes, era do meu tamanho. Fiquei confiante, mas 'Seu' Josias continuou resmungando. Não devia ser desafio fácil.

O menino que se tornou o plurinogorfo era gordo como um mini-lutador de sumô. Comecei a me concentrar e olhei meu oponente.

No minuto seguinte, eu estava no chão. Não sei dizer o que aconteceu. Não tive tempo nem de vê-lo se aproximar de mim, mas agora estava deitado sobre ele. Seus braços enrolaram-se em meus braços e soube que era inútil resistir por ali. Concentrei-me em minhas pernas, ainda livres. Dei forte impulso e fiz um rolamento para trás. Acho que o peguei desprevinido. Seu corpo pesado não conseguiu me acompanhar e ele acabou, no desequilíbrio, soltando meu braço esquerdo. Ele ficou deitado e sua mão buscou minha cabeça.

Então foi a minha vez.

O tempo ficou lento e eu pude ver perfeitamente os movimentos de Prosfrus. Evitei seu golpe e girei sobre o braço direito, ainda preso. Ficamos frente a frente. Pus minhas pernas sobre as cochas deles, joelhos por fora, pés por dentro, imoblizando-o. O braço direito preso tornou-se vantagem, pois também anulava o braço dele. Levei meu braço esquerdo em direção ao seu rosto.

E foi a vez dele, novamente.

Ele me puxou pelo braço direito de uma forma que eu não previra e eu me desequilibrei. Num segundo, eu estava com a barriga no chão e ele em cima de mim. Soltei o braço direito e abracei com ele meu próprio pescoço um instante antes dele se jogar em cima das minhas costas.

Eu estava imobilizado. Não conseguia mexer nenhuma parte do corpo. As pernas dele travavam as minhas, o meu braço esquerdo dominado pelo dele.

Mas minha mão direita estava firme em sua bochecha. Ele se jogará em cima dela ao descer.

O plurinogorfo soltou uma exclamação de surpresa. 'Seu' Josias também. A rainha sorriu.

E eu fiquei em Paraíso.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 21

Enquanto os exércitos marchavam para a luz, alguns em silêncio funéreo, outros cantando cantigas alegres, nós íamos na direção oposta, cercados pelas criaturas que tinham longas antenas como de louva-deuses. Por fim, entramos numa tenda imensa e cheia de aglomerações. A sensação de atravessar a parede de bolha da tenda foi refrescante, como tomar um banho de mangueira no jardim.

Dentro da bolha, passamos por diversas cabanas e barracas, indo para o centro. Os 'antena de louva-deus' iam trocando informações roçando suas antenas nas antenas de outros pelo caminho e as passagens e portas foram sendo abertas, sem que uma palavra audível fosse trocada.

Enfim, entramos numa imensa cabana, de um material que me lembrou as colméias acinzentadas dos marimbondos. No centro, havia um círculo de cadeiras e, numa delas, sentava-se uma linda mulher, de cabelos que variavam entre o negro e o vermelho intenso, dependendo da posição de sua cabeça. Vestia uma bata multi-colorida e calças brancas. De uma tiara com um brilho azulado, em sua cabeça, descia um longo véu que passava por trás do encosto da cadeira e se derramava no chão, como uma cachoeira que derramava suas águas num tranqüilo lago. Seu nome era Anácris e ela era rainha do Paraíso.

Eu me postei na frente dela e me ajoelhei, cometendo minha primeira gafe. Todos me olharam como se eu fosse de outro planeta... 'Seu' Josias me socorreu.

- Está passando mal? - perguntou.

Levantei-me sem graça e me recompus. Então o plurinogorfo contou uma rápida versão da história à rainha.

- Você foi enganado por um menino de doze anos? - ela sorria e olhava para mim. - Mas você precisa voltar...

Tentei encará-la firmemente e minha voz, ao dizer 'não', saiu com a decisão que eu queria. Mas meus olhos se encheram de lágrimas.

- Como é seu nome? - ela perguntou, com suavidade.

O velho problema do nome. Odeio meu nome. Não quero dizê-lo. Quero outro nome. E por que não? Outro mundo, outro nome. Pensei em meus heróis, nas histórias que a babá contava à noite, para que eu dormisse e, por fim, fiz minha escolha.

- Viramundo. - exclamei. E diante do olhar de surpresa de 'Seu' Josias: - Aqui, meu nome é Viramundo.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 20

Eu sorri, irônico...

- Não está reconhecendo a própria casa, 'Seu' Josias?

O plurinogorfo me soltou e olhou em volta. As sementes que as árvores haviam lançado no chão já eram pequenos arbustos. O sol brilhou mais forte. 'Seu' Josias me agarrou pelo braço e correu em direção às tendas.

- Nada bom! - ele repetia para si mesmo. Escondeu-se atrás de um rack com diversos objetos parecidos com grandes couves de couro. Vi um gigantesco hominídeo com ombros muito pontudos pegar um dos objetos, que se abriu como uma pequena asa triangular, de onde duas alças se soltavam. Ele prendeu as alças em cruz, no peito, e as puxou. A asa se fechou sobre ele, envolvendo seu corpo, moldando-se a ele, cobrindo os braços e as pernas e até a cabeça. Então, o imenso sujeito correu em direção a um batalhão próximo, que se organizava em forma de uma estrela. Duas pequenas criaturas correram e, com um grande pulo, instalaram-se nos ombros do gigante, enquanto ele se colocava em sua posição.

Em seguida, o batalhão inteiro começou a marchar.

'Seu' Josias ainda me olhava assustado. Eu estiquei a mão para tocar em uma das couves, mas ele me puxou de volta.

- Eu não acredito que você nos trouxe a Paraíso! - ele exclamou. - Vamos voltar agora para a Terra!

- Vá sozinho! - retorqui com firmeza. Ele viu a determinação em meus olhos. No momento seguinte, estávamos cercados por diversas criaturas com expressões desagradáveis.

- Quem são?! - uma das criaturas gritou.

- Sou Trestede. Espião da rainha em missão especial na Terra. Mas tive um pequeno contratempo...

As criaturas se entreolharam e um zumbido encheu o ar.

- Estão se comunicando com o líder... - disse 'Seu' Josias, mas agora eu conhecia seu verdadeiro nome.

Olhei de novo para o nascente. O brilho era cada vez mais forte, enchendo os campos de luz.

- O sol já vai nascer... - eu disse, pensando que seria meu primeiro amanhecer em Paraíso.

- Não é Sol nem estrela nenhuma... - corrigiu-me Trestede.

As criaturas também olharam em direção à luz. Uma delas me olhou nos olhos:

- Aquele brilho é Los.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 19

Tive que tomar fôlego para absorver o que vi. Sob a luz de um sol que nascia atrás de mim (não sei dizer se era o leste, agora que estávamos em outro planeta; pensando bem, nem deve se chamar sol a estrela que ilumina essa terra), vi correndo centenas de animais imensos, com o corpo grande e patas arredondadas, as costas e o lombo cinzentos e as patas esverdeadas. Suas caudas eram grandes e chatas e balançavam tensamente enquanto corriam. Já suas cabeças eram imensas e com fileiras de calombos na linha dos olhos saltados. As bocarras gigantescas tinham dentes que se encaixavam. Era um dos batalhões de crocofantes, eu soube mais tarde, e eles corriam em direção ao nascer da estrela nascente. Eles passavam à minha esquerda, a não mais do que 20 passos.

Algumas dezenas de hominídeos com asas voavam acima dos crocofantes. Eu reconheci suas formas: eram plurinogorfos, parecidos com o que vi morrer em frente ao Colégio Arnaldo, num planeta que ficava cada vez mais distante em minha cabeça. Tinham asas de couro, sem penas, mas não pareciam asas de morcego. Eram multicoloridas, assim como seus corpos. Gritavam palavras de ordem para os crocofantes e trocavam idéias entre si. Eu não tinha certeza se entendia o que falavam, apesar dos sons parecerem conhecidos.

À minha direita, bem mais à distância, encontrava-se uma floresta de árvores altas, com folhas azuladas e prateadas. Por baixo do estampido do correr dos crocofantes, a floresta parecia emitir um som baixo e ritmado, como o revolver de terra. Entre as árvores, via-se grandes quadrúpedes com vários chifres por todo o corpo, a ponto de lembrarem imensos porcos-espinho. Soube que se chamavam Cornocorpóreos. Num movimento sincronizado, vários deles saíram à frente das árvores e rolaram no chão, deixando milhares de buracos no solo. As árvores inclinaram-se para trás e, enquanto os animais voltavam para dentro, dobraram-se com força para frente, catapultando milhares - talvez milhões - de pequenas frutas que cobriram o solo revolvido pelos cornocorpóreos.

Bem à minha frente, haviam as tendas. Eram como grandes bolhas de sabão opacas, algumas solitárias, outras aglomeradas. Seres dos mais diversos entravam e saiam, atravessando as paredes que grudavam-se por instantes aos seus corpos e, ao finalmente se soltarem, voltarem com um leve balançar à posição inicial.

A movimentação era intensa: algo importante acontecia. Além dos crocofantes que continuavam a avançar em direção ao nascente, milhares de outros seres reuniam-se nos mais diversos agrupamentos, e eu pressentia que se preparavam para uma batalha.

Essa foi a primeira volta que dei em torno do corpo em Paraíso, antes de 'Seu' Josias me agarrar pelos ombros, assustado, e perguntar:

- Mas para onde é que você nos trouxe???

sábado, 5 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 18

Quando o grito cessou, nós dois olhávamos para o chão. A atenção de 'Seu' Josias fixava-se no corpo do corcoromel, vazando gosma. O meu olhar simplesmente estava caído. Não se fixava em ponto algum. Buscava ver, no espaço entre mim e o chão, o tamanho de minha desilusão.

- Isso foi... Incrível... - disse o homem do saco, e realmente parecia não crer em seus olhos. Cutucou com os pés o pequeno monstro inerte e voltou seu olhar para mim.

Sua voz transmitia agradecimento. Ele sabia que eu salvara sua vida.

- E você devia ser meu guarda-costas... - eu disse, com um sorriso apagado. Ele sorriu de volta e me abraçou. No calor e aconchego, deixei minha desilusão fluir e ela ensopou a camisa de 'Seu' Josias.

- Há alguma coisa que eu possa fazer por você? Quer dizer, eu imagino que você nem queira mais ser meu amigo. Eu te usei e pus sua vida em risco... Como eu posso compensar? Mesmo que minimamente.

A voz dele era cheia de arrependimento. Senti que ele gostava de mim. Éramos mesmo amigos.

- Para ser sincero, eu acho que acreditei que não seríamos descobertos, aqui. Eu não achei que fosse um risco real... - ele continuou. E pediu desculpas várias e várias vezes.

- Por que você acha que ele atacou você e não eu? Acha que ele já sabia que eu não era o príncipe? - eu perguntei.

- Certamente ele sabia. Deve ter te seguido depois de matar Ostrede e ouviu nossa conversa.

- Você acha que o príncipe está bem?

- Preciso saber...

Acompanhei 'Seu' Josias até o telefone público mais próximo. Ele ligou para alguém, mas eu não escutei a conversa. Em seguida, ele me disse que o príncipe estava bem e que iam mudá-lo de planeta.

- Você vai embora, então?

- Vou... - ele disse, com voz triste. - Mas ainda devo ficar um ou dois dias, até decidirem para onde vamos...

- Hong Kong...

- Não... Hong Kong ainda é na Terra. Acho que eles vão...

- Eu queria conhecer Hong Kong.

Olhei para o plurinogorfo o mais inocente que pude. Ele cairia nesse golpe?

- Eu queria participar da mágica só uma vez. Ter essa sensação. Podemos ir para Hong Kong? Voltamos amanhã. Ou hoje a noite!

Ele ficou tão animado! Era como se visse a oportunidade de redenção por ter me enganado. Eu cheguei a me sentir envergonhado e quase desisti da idéia, mas foi mais forte que eu.

- Para viajar, basta aproveitar um pouco de luz, que tem grande velocidade. Um pingo de tempo é mais que o suficiente para irmos a qualquer lugar. Estaremos em Hong Kong em um piscar de olhos.

- E o desejo? - perguntei.

- Bom, parece que você tem desejo suficiente aí! - ele sorriu, vendo meu rosto se alegrar - Coloco um pouco de desejo manipulável e só é necessário que você o molde através do seu próprio desejo.

Ele abriu o saco e pegou um cubo, parecido com o que tinha me dado meses atrás e que continha fadas. Em seguida, pegou uma lâmpada parecida com aquelas velhas lâmpadas que contém gênios. - Luz! - ele exclamou, virando a lâmpada dentro do cubo, do qual ele havia aberto uma das faces. Uma pequena chama escorreu da lâmpada e ficou no centro do cubo, flutuando.

Em seguida, pegou uma ampulheta, agitou sua areia e deixou que três grãos caíssem na chama, por uma pequena torneira na base do objeto.

- Tempo! - Ele disse. Por fim, pegou um objeto estranho, que parecia mudar de forma todo o tempo. Ele deixou que eu segurasse o objeto e sua consistência era estranha. Parecia carne crua. Achei aflitivo e devolvi para ele.

Ele coçou o objeto com a unha e um pequeno orifício se abriu. Senti cheiro de enxofre enquanto ele enfiava uma agulha dentro do estranho saco, que saiu molhada de um líquido parecido com geléia de morango.

Ele colocou a agulha no centro da chama e fez diversos movimentos, alinhando os grãos de tempo e moldando a chama com a agulha cheia de desejo. Por fim, fechou a caixa.

- Agora, eu seguro em você e você deseja ir para Hong Kong. E, quando estiver pronto, eu te passo a caixa, ok?

Eu estava pronto. Peguei a caixa da mão dele e o mundo desapareceu.

Foi rápido. Não foi imediato, como eu pensei que seria. Tudo ficou escuro e eu posso jurar que vi passar o final de nosso universo. Acho que se a distância fosse menor, seria instantâneo.

Mas viajamos para outro universo.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 17

- Terceiro encontro?

- Sim... - disse 'Seu' Josias olhando para os lados, procurando sinais do corcoromel.

- Porque só agora você me contou tudo isso?

O plurinogorfo olhou-me sem entender.

- Talvez fosse menos perigoso... - eu sugeri - ...que eu não soubesse que era o príncipe, não acha?

Ele continuou me olhando, mas agora parecia chateado.

- Talvez o melhor mesmo seria fazer outra pessoa pensar que era o príncipe, assim poderia despistar melhor no caso de um corcoromel aparecer...

Ele abriu a boca e achei que ele fosse negar tudo, mas ele desistiu no meio do caminho.

Vi o mundo através de uma lente amplificadora, mas borrada, formada por lágrimas.

- E eu sou a distração...

'Seu' Josias olhava o chão, agora. Também chorava. Balbuciou desculpas desconexas. Um estranho sentimento começou a brotar, dentro de mim. Uma alegria triste de ter sido envolvido naquele mundo, mesmo dessa maneira enganosa. Eu me sentia outra pessoa. Um príncipe havia nascido dentro de mim, onde antes havia um vagabundo humilhado.

E, mais uma vez, as coisas aconteceram rápido demais.

Mas dessa vez eu estava preparado.

Ouvi um som de trás de um monte de escombros da casa. Um roçar que lembrava as unhas de gatos cavando a areia. Então, desacelerei o mundo, como vinha fazendo em minhas aulas de caratê. O corcoromel não era grande. Devia ter uns 40 ou 50 centímetros de altura. Correu pelo chão em direção ao plurinogorfo, pulou de lado, suas garras entrando facilmente no reboco dos restos de uma parede.

'Seu' Josias, abriu a boca ao ver o pequeno monstro, mas o grito pareceu demorar um século para chegar aos meus ouvidos. Quando chegou, o corcoromel já estava morto.

Eu o atravessei com uma barra de ferro que estava no chão um segundo antes. A barra penetrou por seu único olho e saiu pela barriga, espalhando um líquido branco e viscoso como o que sai das barrigas das baratas esmagadas.

Ele esticou três vezes as patas, estribuchando, e ficou quieto.

E então o grito de 'Seu' Josias chegou e encheu o ar.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 16

Não quis ficar perto daquele corpo. Não pensei, no momento, que minha vida estava em jogo. Ao ver aquele boneco sem vida e sem faces, duvidei de tudo. Da magia, de reinos distantes, de mim mesmo. Uma dor estranha fechou minha garganta e eu corri para longe. Algumas pessoas aproximavam-se do corpo. Imaginei policiais me perguntando sobre o que sabia a respeito do mendigo morto. A dor crescia e tentava explodir em meu peito.

Atravessei a Afonso Pena sem olhar para os lados, subi a Pernambuco e em instantes estava em frente à casa dos Passos. Entrei pelo portão semi-solto, como sempre fazíamos juntos, eu e 'Seu' Josias. Corri para o meio dos escombros por trás da fachada quase intacta, chutei pedras e pedaços de madeira, atirei tijolos partidos nas paredes e, por fim, me sentei no lugar onde sempre nos sentávamos quando ele ia me contar a história de meu reino e chorei.

- Não teve escola hoje? - disse 'Seu' Josias, levantando-se de onde sempre dormia.

Olhei para ela assombrado. Ele percebeu que eu chorava.

- O que houve? Falhei em minha tarefa de protegê-lo, majestade?

Eu me dei conta de que ele não me chamava de majestade há algum tempo.

- Foi tudo encenação? - perguntei, confuso - Foi dolorido, não faça isso de novo!

- Do que você está falando?

Sem paciência, contei a ele sobre a sua 'morte', certo de que ele me pregava uma peça. Mas quanto mais eu contava, mais suas feições refletiam medo.

- Parque Municipal? Ostrede! Ele está morto?

Falei sobre os buracos no peito. Ostrede era um nome? Percebi que assumi que meu guarda-costas se chamava 'Seu' Josias, mas ele devia ter outro nome.

Quando enfim comecei a me acalmar, ele contou:

Somos cinco no planeta. A rainha mandou o resto de nós para distrair possíveis assassinos enviados pelo usurpador. Cada um ficou com uma criança, quando chegou à Terra. Quatro buracos no peito significa que deve ser um corcoromel. São seres quadrúpedes, com patas que terminam em pontas afiadas. São rápidos como gotas de chuva.

Nós, plurinogorfos, não temo capacidade ilimitada de mutação. Assim, achamos mais prático assumirmos as mesmas feições. Até porque assim nos reconhecemos mais facilmente. Nós nos encontramos uma vez a cada dois anos para mudarmos de feição e trocarmos notícias. Mais do que isso seria perigoso. O terceiro encontro será daqui há dois meses.

Percebi que 'Seu' Josias estava apavorado com a possibilidade de um corcoromel. E o medo faz com que a gente cometa erros...

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 15

Houve essa excursão do colégio ao Parque Municipal. Eu me sentia distante dos outros meninos e isso acabou me rendendo a fama de esquisito, nos últimos tempos. Sentei-me para apreciar os raios de sol que passavam entre as árvores e imaginei que talvez um desses raios pudesse ser manipulável.

Vi 'Seu' Josias na entrada do parque e acenei para ele. Era estranho saber que eu tinha essa espécie de guarda-costas mutante e não pude deixar de me sentir um pouco como John Connor nos filmes do Exterminador do Futuro.

'Seu' Josias não me respondeu. Ao invés disso, afastou-se apressado, como se meu aceno fosse um alerta de perigo. Então senti o balão de água explodir em minhas costas, me encharcando inteiro. Virei para trás e dois de meus colegas gargalhavam, apontando para mim.

- Ó o filho do homem do saco!! - gritou o primeiro, e gargalharam.

- Ó o amante de negro! - gritou o outro, o que realmente me tirou do sério. Enfiei meu punho na boca do imbecil, sentindo-o esparramar no chão como um monte de muco esverdeado. A professora começou a gritar, correndo em nossa direção. Eu imaginei o que viria daí e tomei uma decisão: corri atrás de 'Seu' Josias. Por que ele havia fugido de mim? Ele não deveria me proteger?

Corri para a saída do parque e alcancei a Av. dos Andradas a tempo de vê-lo virar na Alameda Álvaro Celso. Eu o persegui até a Bernardo Monteiro, me aproximando aos poucos. Ele já estava à distância de um grito quando virou na frente do Colégio Arnaldo.

Foi tudo tão rápido. Ele sumiu por trás de uma árvore e eu coloquei toda minha força nas pernas para alcançá-lo. Quando contornei a árvore, ele estava no chão. As pernas abertas, os olhos esbugalhados. Da boca, uma gosma azulada saia. Mais uma vez, ele pareceu sair de foco, mas dessa vez não assumiu outra feição. Seus traços humanos sumiram, como se ele fosse um desses bonecos de simulação de acidente de carro. Havia quatro furos no seu peito, um bem perto da garganta, os outros formando os vértices de um quadrado, nos dois lados do peito e no estômago. E eu entendi: ele estava morto.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 14

- Sabe o que eu não entendo? - perguntei, dois ou três dias depois - Se os exilados do nosso planeta colonizaram a Terra, como é que ninguém aqui sabe do nosso reino?

- Eles sabem... - respondeu 'Seu' Josias - mas pensam que são mitos... A história, pelo que consta, foi que os primeiros humanos que vieram parar aqui rapidamente descobriram que era impossível manipular o tempo ou a luz dessa dimensão. O que era ruim, mas ao mesmo tempo tornava o ambiente menos atrativo.

O primeiro humano que veio para cá, por exemplo. Tenho certeza de que você já ouviu seu nome. Chamava-se Adão. Ele formou uma pequena colônia e baseou as suas regras e leis na única coisa moldável, nesse planeta: o desejo.

Muito rápido, um de seus seguidores tomou o poder na pequena tribo. Ele confiscava o tempo e a luz que os recém-chegados traziam e, por fim, ninguém mais veio.

Em breve, não havia mais elementos manipuláveis e as gerações foram nos esquecendo aos poucos. Mas a história marcou as lendas...


- Por exemplo?

- Por exemplo, você se lembra como se chama nosso reino?

- Não... - admiti, envergonhado.

- Chama-se Paraíso...

Voltei para casa pensando em magias e milagres. É possível manipular desejos, nesse mundo. Fazia muito sentido, para mim. Um mundo movido a desejo, onde luz e tempo parecem sempre escassos. Não é assim, esse planetinha? Fui para minha aula de caratê com isso na cabeça. Não seria o tempo nem um pouquinho manipulável, nesse planeta? Algumas pessoas afirmavam que conseguiam fazer o tempo passar mais rápido ou mais devagar, mas eu me perguntava se não era apenas impressões que vinham do desejo.

Resolvi testar na aula de caratê. Afinal, se fosse possível manipular um pouco o tempo, minhas reações pareceriam ser as mais rápidas da turma.

Coloquei todo o meu desejo nisso. E era um desejo imenso.

No final de uma semana (eu treinava todos os dias), alguma coisa me parecia acontecer. Meus oponentes pareciam lentos. Eu podia ver suas mãos, vindo em minha direção. Era como se eles lutassem dentro da água. O rio do tempo os envolvia e, agora, eu sabia nadar.

Meu mestre elogiou minha concentração, durante a semana. Será que os sensei sabem que manipulam o tempo? Minimamente, tudo o que é possível nesse planetinha. Contei a ele que o tempo diminuia a velocidade quando eu me concentrava. Ele apenas sorriu.

Um mês depois, eu era faixa laranja.