domingo, 25 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 15

Nunca achei interessante, mas já que estamos aqui, me dêem um minuto de paciência para contar minha história.

Nasci em Minas Gerais, numa velha cidade chamada Moeda. Nasci meio branca, meio negra, numa época em que os escravos ainda andavam em grilhões. Sei que minha mãe era escrava, mas não sei se fui abandonada por ordem do patrão ou por compaixão: talvez minha mãe me preferisse morta a me ver nas correntes.

Quando meu padrinho me achou, eu estava coberta de formigas, deitada em folhas de bananeira arrumadas às pressas. Acho que fui parida ali, naquelas folhas, sobre aquelas formigas que tão prontamente me acolheram em seus ferrões.

Quando meu padrinho me achou, teve que afugentar o cachorro do mato que mastigava o que devia ter sido a minha placenta. A besta rosnou enquanto andava de costas e me puxava pelo cordão umbilical ainda ligado à bolsa que levava em sua boca. Foi uma pedrada certeira que fez o cachorro me soltar e - eu sei, parece loucura, mas guardei até a morte o ganido do cão em meu umbigo, como uma cicatriz sonora de raiva e medo da vida.

Meu padrinho me pegou no colo e voltou a correr, o metal, ainda atarrachado a seus pés, cortando a carne enquanto ele se embrenhava para o meio do mato, subindo morro, buscando liberdade. Buscando quilombo, que nunca achou.

Por isso vivi minha vida toda no meio do mato, nos morros de Minas. Fugindo sempre. Sem saber o que era outra gente que não meu padrinho.

Foram muitos anos que se passaram e eu já tinha peito e cabelo nas partes íntimas quando, enfim, encontrei um quilombo. Era Sapé, que me acolheu. Meu padrinho já tinha morrido, picado de cobra. Sem saber o que fazer com o corpo e sem querer largá-los para os cachorros do mato, deixei-o descer o Rio Paraopeba, e vaguei até a cidade só de negros.

Meu padrinho havia me ensinado a falar, então pude contar minha história quando uma negra muito velha e muito gorda, anciã em Sapé, me contou que não era preciso fugir mais.

A escravidão havia terminado.

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