quinta-feira, 29 de maio de 2008

Mata Verde - Cap. 17

Foi de tanto vagar por anos a fio que terminei nas terras que hoje são chamadas de Mato Grosso, na medula da mata amazônica. Fui deixando de ser gente, virando a cada instante bicho. Sentia que me surgiam pêlos nas faces e, ao beber água no rio, percebi que, enfim, tinha me tornado uma cadela do mato. Mas ainda levemente humana, com meu cabelo escorrido de branco arrastando-se no chão, que agora ficava próximo, pois eu andava de quatro.

Prometi que nunca mais chegaria perto d'água, com medo de descobrir que nada humano havia sobrado. No fim de 4 dias, eu me sentia fraca e tomei a decisão de morrer.

Me pareceu tão simples e conveniente!

É claro que não foi assim... A sede, enfim, me deixou prostrada. Meus membros já não suportavam meu peso e meu pescoço era tão bambo quanto o de um recém-nascido. Na desidratação, eu já não tinha lágrimas, mas chorei a seco de dor e solidão.

Então, ele apareceu. Quando eu estava mais morta do que viva, quando não restava mais do que um suspiro, apareceu meu velho conhecido.

O mesmo cachorro do mato que havia comido parte de mim quando eu nasci.

Reconheci suas manchas e o olhar faminto e raivoso. Abri a boca para gritar e afugentá-lo.

Mas morri antes.

Ele se aproximou de meu corpo, que eu sentia menos meu e mais distante, como se o mundo todo se expandisse à minha volta. Só um fio de luz ainda me mantinha minimamente presa àquela casca de carne que o cachorro contornava, aproximando-se aos poucos.

Ele abocanhou de leve a batata de minha perna e aumentou aos poucos a força da mandíbula, ao mesmo tempo em que fazia força para puxar-me. Não houve dor. Nem resistência. Ele soube que eu estava morta e ia terminar o banquete que começara um tempo incontável atrás.

Todo meu ódio virou sede. O fio de luz que saía de mim e entrava no umbigo do meu corpo brilhou com intensidade.

E eu matei minha sede naquele cachorro desgraçado, ouvindo o mesmo ganido que marcara meu ouvido quando havia acabado de nascer.

Foi a última vez que ouvi aquele ganido.

Nenhum comentário: