Quando o grito cessou, nós dois olhávamos para o chão. A atenção de 'Seu' Josias fixava-se no corpo do corcoromel, vazando gosma. O meu olhar simplesmente estava caído. Não se fixava em ponto algum. Buscava ver, no espaço entre mim e o chão, o tamanho de minha desilusão.
- Isso foi... Incrível... - disse o homem do saco, e realmente parecia não crer em seus olhos. Cutucou com os pés o pequeno monstro inerte e voltou seu olhar para mim.
Sua voz transmitia agradecimento. Ele sabia que eu salvara sua vida.
- E você devia ser meu guarda-costas... - eu disse, com um sorriso apagado. Ele sorriu de volta e me abraçou. No calor e aconchego, deixei minha desilusão fluir e ela ensopou a camisa de 'Seu' Josias.
- Há alguma coisa que eu possa fazer por você? Quer dizer, eu imagino que você nem queira mais ser meu amigo. Eu te usei e pus sua vida em risco... Como eu posso compensar? Mesmo que minimamente.
A voz dele era cheia de arrependimento. Senti que ele gostava de mim. Éramos mesmo amigos.
- Para ser sincero, eu acho que acreditei que não seríamos descobertos, aqui. Eu não achei que fosse um risco real... - ele continuou. E pediu desculpas várias e várias vezes.
- Por que você acha que ele atacou você e não eu? Acha que ele já sabia que eu não era o príncipe? - eu perguntei.
- Certamente ele sabia. Deve ter te seguido depois de matar Ostrede e ouviu nossa conversa.
- Você acha que o príncipe está bem?
- Preciso saber...
Acompanhei 'Seu' Josias até o telefone público mais próximo. Ele ligou para alguém, mas eu não escutei a conversa. Em seguida, ele me disse que o príncipe estava bem e que iam mudá-lo de planeta.
- Você vai embora, então?
- Vou... - ele disse, com voz triste. - Mas ainda devo ficar um ou dois dias, até decidirem para onde vamos...
- Hong Kong...
- Não... Hong Kong ainda é na Terra. Acho que eles vão...
- Eu queria conhecer Hong Kong.
Olhei para o plurinogorfo o mais inocente que pude. Ele cairia nesse golpe?
- Eu queria participar da mágica só uma vez. Ter essa sensação. Podemos ir para Hong Kong? Voltamos amanhã. Ou hoje a noite!
Ele ficou tão animado! Era como se visse a oportunidade de redenção por ter me enganado. Eu cheguei a me sentir envergonhado e quase desisti da idéia, mas foi mais forte que eu.
- Para viajar, basta aproveitar um pouco de luz, que tem grande velocidade. Um pingo de tempo é mais que o suficiente para irmos a qualquer lugar. Estaremos em Hong Kong em um piscar de olhos.
- E o desejo? - perguntei.
- Bom, parece que você tem desejo suficiente aí! - ele sorriu, vendo meu rosto se alegrar - Coloco um pouco de desejo manipulável e só é necessário que você o molde através do seu próprio desejo.
Ele abriu o saco e pegou um cubo, parecido com o que tinha me dado meses atrás e que continha fadas. Em seguida, pegou uma lâmpada parecida com aquelas velhas lâmpadas que contém gênios. - Luz! - ele exclamou, virando a lâmpada dentro do cubo, do qual ele havia aberto uma das faces. Uma pequena chama escorreu da lâmpada e ficou no centro do cubo, flutuando.
Em seguida, pegou uma ampulheta, agitou sua areia e deixou que três grãos caíssem na chama, por uma pequena torneira na base do objeto.
- Tempo! - Ele disse. Por fim, pegou um objeto estranho, que parecia mudar de forma todo o tempo. Ele deixou que eu segurasse o objeto e sua consistência era estranha. Parecia carne crua. Achei aflitivo e devolvi para ele.
Ele coçou o objeto com a unha e um pequeno orifício se abriu. Senti cheiro de enxofre enquanto ele enfiava uma agulha dentro do estranho saco, que saiu molhada de um líquido parecido com geléia de morango.
Ele colocou a agulha no centro da chama e fez diversos movimentos, alinhando os grãos de tempo e moldando a chama com a agulha cheia de desejo. Por fim, fechou a caixa.
- Agora, eu seguro em você e você deseja ir para Hong Kong. E, quando estiver pronto, eu te passo a caixa, ok?
Eu estava pronto. Peguei a caixa da mão dele e o mundo desapareceu.
Foi rápido. Não foi imediato, como eu pensei que seria. Tudo ficou escuro e eu posso jurar que vi passar o final de nosso universo. Acho que se a distância fosse menor, seria instantâneo.
Mas viajamos para outro universo.
sábado, 5 de julho de 2008
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